O Lobo Atrás da Porta, de Fernando Coimbra

O Lobo Atras da Porta

:: Filme na programação da Mostra SP ::

O clímax do filme acontece logo no começo dele. Mas não sabemos disso. Trata-se de uma cena que aparenta ser uma como outra qualquer. Revisitada no fim da história, agora com a câmera olhando para o outro lado do ambiente, entendemos como o primeiro longa-metragem de Fernando Coimbra é hábil em conter a tensão que, inevitavelmente, irá explodir em algum momento. Num incrível trabalho de montagem que parece ter sido milimetricamente calculado por outro incrível trabalho de roteiro, O Lobo Atrás da Porta sabe inspirar e expirar na hora certa, seu controle de tempo é admirável. E Coimbra faz com isso um filme de gênero, um que não tem tanta tradição no cinema nacional, o suspense policial.

Inspirado numa história real, ainda que o diretor admita ter tomado várias decisões narrativas que fogem ao fato original, o filme parte de uma mãe, vivida por Fabíula Nascimento, que vai buscar sua filha na creche e quando lá chega descobre que a menina foi embora com uma “vizinha”. O caso do desaparecimento da criança logo vai para a delegacia e de lá, a partir dos interrogatórios, vamos aos poucos entendendo quem é quem na trama e o que aconteceu até ali. Existem dois pontos de vistas em flashbacks distintos. Um é narrado sob a perspectiva do pai da menina, Milhem Cortaz, e outro terá como depoente a amante dele, mais uma interpretação de tirar o fôlego de Leandra Leal.

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Amor, Plástico e Barulho, de Renata Pinheiro

Amor Plastico Barulho

:: Filme na programação da Mostra SP ::

A chamada “cultura brega” que rebola com barriguinha de fora pelas periferias do Brasil tem sido um campo bastante estimulante para que a indústria do consumo se aproprie de seus signos mais elementares e os resignifique em produtos prontos para uma classe média alta ávida em consumir referências externas (e de baixo) com o devido filtro do folclórico. Temos festas, ensaios fotográficos em revistas caras e recentemente até uma novela global a se usar desses artifícios.

Pois agora pegue esse coador de onde o brega escorria sem nata no copo de quem o consumia limpo, e jogue ele no lixo. Porque Amor, Plástico e Barulho não olha o brega de cima, de lado ou na diagonal. Olha de frente. E o resultado disso é um filme de personagens que nunca vimos antes, particularmente com mulheres que nunca vimos antes, não pelo menos do lugar de onde elas e seus corpos falam. Jaqueline e Shelly, respectivamente Maeve Jinkings e Nash Laila, nos contam das delícias e desastres de quem acredita que coração só é capaz de rimar com paixão e tesão.

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Dark Blood, de George Sluizer

dark blood

:: Filme na programação da Mostra SP ::

Em 1993, George Sluizer recebeu a notícia de que River Phoenix havia morrido de overdose. Era o ator principal do longa que ele estava filmando. Sluizer fechou o roteiro e guardou os rolos com as cenas já filmadas. O projeto estaria para sempre enterrado não fosse pelo dia de Natal de 2007, quando o próprio diretor sofreu um aneurisma na França. Entrou em coma e sua morte era quase certa. Mas um médico acreditou em sua reabilitação e no primeiro momento em que recuperou consciência, Sluizer pediu para voltar a Los Angeles pois queria terminar o trabalho que havia começado com Phoenix.

Tendo isso dito, é impossível fazer uma revisão deste filme enquanto projeto original. O que o diretor apresenta agora é um esboço do que seria o resultado final não tivesse o protagonista morrido no meio das filmagens. As cenas do roteiro que não foram filmadas são narradas pelo próprio Sluizer enquanto vemos ora imagens congeladas, ora sobras de filme. No entanto, é possível sim criar um estranho paralelo entre essa proposta de roteiro, o filme incompleto que se torna um projeto em si e a própria morte prematura do tal “James Dean da geração X”, além da experiência de quase morte do diretor em questão.

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Ilo Ilo, de Anthony Chen

Ilo Ilo

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Os pequenos poderes da classe média, a crise da classe média, as relações familiares da classe média. Estamos no campo dos comportamentos sociais que se reproduzem de Norte a Sul, de Singapura ao Brasil, provando sempre que ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais. Ilo Ilo, Caméra d’Or em Cannes este ano, é um filme que dialoga com muitas das questões latentes em recentes filmes brasileiros como Trabalhar Cansa, O Som ao Redor e o documentário Doméstica e que, não apenas por isso, tem muito a nos falar e o faz de uma maneira delicada e cuidadosa enquanto instrumento crítico.

Trata-se de uma história centrada em uma família da Singapura – mãe, pai e filho – que contrata uma empregada doméstica para cuidar da casa e ao mesmo tempo servir de babá para o menino. Estamos no fim dos anos 90 e essa mãe está grávida, o pai fuma escondido, o menino é mimado e a empregada vem das Filipinas, passaporte guardado na gaveta da patroa – “pra ela não fugir”, justifica a mulher.

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Cortinas Fechadas, de Jafar Panahi e Kambuzia Partovi

Panahi

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Atrás das grades. De onde a câmera se encontra no começo do filme entendemos que a Panahi só é hoje dada a possibilidade de discutir seu próprio aprisionamento artístico. E sendo a sua arte o cinema, essa discussão, mais uma vez, estará centrada em colocar à prova a natureza de uma narrativa filmada, desde seus recursos técnicos à construção de personagens. É assim que dando continuidade ao que começou há dois anos com Isto Não É Um Filme, o diretor iraniano que foi condenado em 2010 a prisão domiciliar por seis anos e, pior, 20 anos proibido de fazer cinema, que Panahi burla mais uma vez sua sentença e disserta sobre seu trabalho.

E se Isto Não É um Filme falava sobre o conceito do cinema a partir de sua negação, Cortinas Fechadas fala sobre a negação do próprio autor. Sim, é um filme triste que reflete um pouco um aparente estágio de depressão do diretor. Panahi fala sobre o esquecimento de personagens, o cortinamento de seus filmes, sua certeza de ser incapaz de fazer qualquer coisa senão aquilo e, em algum momento, até mesmo o tópico suicídio é mencionado. Naturalmente, ao colocar todos esses elementos em evidência com o uso de personagens (incluindo ele próprio) que trafegam para além do cárcere das páginas de um roteiro, Panahi tenta sublimar seu enfraquecimento emocional. Se abre e se expõe ao público em um movimento que, se não corajoso, é no mínimo audaz.

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Entrevista: Hilton Lacerda (Tatuagem)

Hilton

Tive a oportunidade de entrevistar este mês Hilton Lacerda que, no próximo dia 15 de novembro, faz sua estreia no circuito comercial brasileiro com seu primeiro trabalho de direção em ficção. Estamos falando de Tatuagem, filme que precisa ser visto, revisto e discutido. Tentando colaborar com esse debate, segue a conversa que tivemos:

Havia uma ideia inicial de em fazer um documentário sobre o Vivencial antes de pensar em Tatuagem? Procede?

Não exatamente. Eu tinha começado a ler Orgia, do Tulio Carella, e tinha chegado a falar até com Irandhir sobre como seria fazer um peça inspirada no livro. E aí numa conversa com João Silvério Trevisan, a gente era vizinho nessa época, ele me perguntou por que eu não fazia um filme sobre o Vivencial. Nessa época eu pensava eu fazer um filme com o Jomard (Muniz de Brito). E foi engraçado porque tinha um monte de histórias que eu estava construindo pro filme do Jomard que se eu nucleasse aquilo dentro dessa ideia de teatro que o Vivencial tinha, esse monte de ideias confluíam.

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3X3D, de Peter Greenaway, Edgar Pêra e Jean-Luc Godard

3x3d

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E aquela articulação entre tempo e espaço, por onde anda essa velha amiga? É a pergunta que Godard se faz naquele que, de longe, é o melhor entre os três curtas a criar ensaios sobre o cinema 3D, suas possibilidades, limites e, acima de tudo, como bem pontuaria o sempre anarquista diretor francês, a “ditadura do digital” que se ergue no horizonte.

Narrado pelo próprio Godard (e ele aparece brevemente em um superclose nervoso), o curta parece ser um aperitivo do que vem aí no próximo filme do diretor, filmado em 3D: Adieu au Langage. Em bom português: Adeus à Linguagem. Não precisa dizer que Os Três Desastres, nome de seu mais recente experimento, se faz de um discurso apocalíptico que prenuncia um cinema 2D relegado, fisicamente e metaforicamente, à sombra.

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Depois da Chuva, de Cláudio Marques e Marília Hughes

Depois da Chuva

:: Filme na programação da Mostra SP ::

Ao revisitar a vida privada da senhora História, uma produção bem recente do cinema nacional tem revelado questões muito íntimas sobre o corpo político brasileiro diante do espelho. E está fazendo isso de um jeito tão confortável em sua reflexão que chega a ser curioso como qualquer cenário e qualquer tempo se torna o cenário e o tempo de agora, deste preciso momento. Quase tudo pode ser contemporaneizado. Nesse contexto, Depois da Chuva chega a ser um prolongamento do debate que surge (ainda que bem mais debochadamente) em Tatuagem, de Hilton Lacerda, no que diz respeito a olhar a política pelas lentes do homem e o homem pelas lentes da política.

Sem mais comparações, estamos diante de um filme vivo em várias das questões que põe sobre a mesa. Neste caso, as mesas de uma sala de aula de alguma escola particular de Salvador, onde meninos brancos de classe média emulam relações de poder que estreitam com ironia a dinâmica entre um grêmio estudantil e qualquer estrutura do poder executivo federal. No entanto, mais vivo ele seria se tivesse cuidado maior em estabelecer não apenas o peso dos personagens em cena, como a fluência das ações previstas no roteiro. Depois da Chuva tem vários momentos incríveis que, de uma hora pra outra, com um corte, perdem força e ritmo.

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Habi, a Estrangeira, de María Florencia Alvarez

Habi

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Em seu primeiro longa-metragem, a argentina María Florencia Alvarez faz um recorte de uma Buenos Aires que desconhecemos e nos apresenta um argumento interessante sobre uma menina em busca de sua própria identidade a partir de uma comunidade muçulmana. Mas os méritos do filme estacionam aí. Existe uma apatia emocional da personagem-título que contamina a história. Os conflitos que surgem nela não convencem, suas questões sobre o mundo parecem estar sempre dormentes. E o fato da personagem ser naturalmente introspectiva não exime o roteiro em achar alguma solução dramática para que embarquemos no caminho e nas dúvidas da protagonista.

Co-produção Argentina/Brasil (com dedo de Walter Salles), o filme acompanha a trajetória de Analía, uma menina de interior que, ao fazer uma entrega em Buenos Aires de uma peças de artesanato confeccionadas por sua mãe, termina conhecendo a tal comunidade muçulmana e, por aparente falta de pertencimento a qualquer ambiente ou ideia, decide se integrar àquele grupo. Aluga um quarto de uma pousada e adota o nome de uma menina desaparecida (nome que ela vê em um cartaz colado na casa onde terá aulas de árabe e de religião, uma decisão que já me parece um problema sério do roteiro).

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Riocorrente, de Paulo Sacramento

riocorrente

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“Tem que começar em algum lugar. Tem que começar em alguma hora. Tem lugar melhor do que este? Tem momento melhor do que agora?”

Riocorrente não é apenas um filme, é também um coquetel molotov. Um que explodiu, partiu o cenário ao redor e me deixou a pergunta: ainda é possível colar os tais caquinhos do velho mundo? Não sei responder, e acho que o filme não procura essa resposta. O que ele quer mesmo é provocar a angústia, o incômodo, nos tirar do lugar do conforto de que as coisas são como são. De que o sistema vai se autogerir sem fissuras ou gritos.

Nesse sentido, Paulo Sacramento faz uma obra tão profética que dá até medo. Quando este filme começou a ser feito, não havia pessoas com cartazes ou máscaras nas ruas das grandes cidades do país, não havia black bloc ou os “baderneiros” e “vândalos” da Globo News. Não que o filme seja sobre isso, até porque não é. Mas em sua montagem muito bem orquestrada sobre essa violência represada com tudo que nos gerencia – do amor ao emprego, do relógio ao trânsito – ele alimenta um mal-estar que só pode mesmo acabar em incêndio.

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