O título indica que as protagonistas desse documentário são todas empregadas domésticas. Ledo engano. Se há neste filme algum tipo de protagonismo, ele só pode caber mesmo nessa estranha e desconfortável intimidade que temos* com quem observa essas pessoas. É o olhar, e não quem se olha, que surge em superclose e sai da tela, derramando em nosso colo e consciência um café há séculos requentado por uma sociedade apegada às suas lembranças escravocratas.
E é no recorte desse olhar que o diretor Gabriel Mascaro cria seu trabalho mais pungente, cinematograficamente ousado e maduro. Ao entregar câmeras para adolescentes de várias partes do país, pedindo que eles filmem suas empregadas domésticas (o que em um dos casos vem a ser um empregado doméstico), Mascaro teve em suas mãos um material que pesquisas acadêmicas nos campos da sociologia e antropologia deveriam tomar como diamante e, quem sabe, exemplo de metodologia daqui pra frente.
Colocando esses jovens como diretores de cena, eliminando assim as implicações de estranhamento entre o diretor e seu objeto, Doméstica tem acesso livre à caverna dos debates esquecidos. Esse lugar que conhecemos no tato, mas sobre o qual nunca jogamos luz.
O que vemos é a grotesca interação que há no Brasil entre empregadores e empregados no âmbito privado da casa. Em todos os casos, nunca é apenas uma relação de trabalho, assim como também nunca é uma relação de família. Não é nada, mas sempre é “como se fosse”. Trata-se de uma naturalização da ideia de que o trabalho doméstico é uma concessão que a Casa Grande deu para que a Senzala pudesse transitar em seu nobre espaço. E isso atravessa gerações.
O documentário levanta todas as questões herdadas dessas relações:
Está lá o cinismo e a culpa cristã da lógica “ela é parte da família”, que dilata quando vemos, pela primeira vez, uma empregada sentar-se à mesa com a família para qual ela trabalha.
Está lá o racismo “brando” que delegou aos negros papéis de subserviência.
Está lá o sexismo que salta aos nossos olhos quando estranhamos ver um homem (branco ainda por cima) servindo de empregado doméstico para uma família.
Está lá o desaforo da arquitetura brasileira que ainda desenha apartamentos com “quarto de empregada”. Expressão que, aliás, terminou ganhando com o tempo e as estratégias publicitárias o eufemismo de “quarto reversível”, na tentativa de dissimular uma outra função àquele ambiente apertado, e sempre sem janelas, para a adaptação moderna da senzala.
Importante colocar que a montagem do filme não aponta dedos. Seria fácil sublinhar empregadores como vilões e empregados como vítimas, mas a edição tem o cuidado de deixar claro que o buraco é mais fundo que isso.
Doméstica é, portanto, um filme necessário. E chega às salas de cinema em um momento importante, quando 125 anos depois da Lei Áurea, setores conservadores do país se sentem no direito de derrubar cotas para negros em universidades e pedir um chá às 10h da noite sem precisar pagar hora extra para tanto.
* Esse gigante sujeito oculto se refere não apenas à classe média brasileira, mas à raiz conservadora entranhada no inconsciente de nossa sociedade
Obs.1: O filme estreia nesta quarta, mas será exibido nesta segunda-feira, em São Paulo, em esquema de pré-estreia no Cine Livraria Cultura, às 20h, seguido de debate com Gabriel Mascaro.
Obs.2: Vai assistir, Danuza.