Minha retrospectiva de cinema do ano de 2024

Enquanto as palavras se desenham sobre uma tela em branco, leio no “feed” das redes sociais que vários profissionais de saúde foram queimados vivos no último hospital que ainda se mantinha funcionando em toda a faixa de Gaza. Que mais de 300 pessoas foram sequestradas de dentro desse hospital, sendo a maior parte de profissionais de saúde, mais também muitos feridos. Todos levados pelo exército de Israel para “interrogatório”. Algumas horas antes, um carro com cinco jornalistas foi alvejado e incendiado por esse mesmo exército. Cinco jornalistas queimados vivos. Se unem ao número agora de mais de 200 jornalistas mortos por Israel desde 7 de outubro de 2023. Em toda Segunda Guerra Mundial, ao redor de todo o continente europeu, foram 69 o número de jornalistas mortos.

E sim, ninguém leu errado. Essa é uma retrospectiva sobre cinema.

Porque enquanto as palavras acima são colocadas sobre uma tela em branco, supostamente tentando gerar significados em suas conjunções, penso sobre nossa capacidade ou incapacidade de, nas ligações, mas sobretudo nos buracos e fendas que essas palavras abrem entre elas – ou deveriam abrir –, imergir na vertigem profunda da experiência humana de sentir a dor do outro. Os corpos que, em massa, queimam vivos na Palestina ocupada, invadida, colonizada, nos comovem, nos co-movem, leia-se, detém a capacidade de coletivamente nos mover de lugar? De nos inquietar? Quando a noite e neblina tocará em nossos corações?

Essa segue sendo uma retrospectiva sobre cinema.

Porque, a rigor, é sobre uma tela em branco dentro de uma sala escura de cinema que as imagens se projetam como “janela do mundo”. Digo “a rigor” porque cada vez mais a experiência de ver filmes sofre um processo de estranha inversão de luminosidades: as imagens se projetam agora em monitores escuros dentro de salas iluminadas demais, transparentes demais para qualquer experiência de imersão e, não paradoxalmente, de distanciamento reflexivo com aquilo que se projeta.

Continuar lendo

O dia que te conheci, de André Novais

Zeca e Luisa pouco se preocupam com isso, mas em linguagem de cinema, sempre houve uma disputa em torno das produções de sentido dos planos-sequência. Zeca e Luisa estão indo tomar uma cerveja. Mas nós que assistimos aos dois se movendo na cidade à noite sem que qualquer corte interrompa essa caminhada, estamos diante de um desses momentos em que a linguagem cinematográfica impõe suas encruzilhadas de controle do tempo-espaço a partir da suspensão dessas duas categorias – tempo e espaço – como uma forma de nos conduzir à indescritível sensação de gravidade zero em qualquer princípio, ainda que tímido, de apaixonamento.

Primeiro porque a sequência em questão é o ponto em que o passado e o futuro dos personagens se encontram no marco fundador de qualquer relacionamento – o nervosismo excitante do encontro com o desconhecido e o desejo silencioso de conhecê-lo um pouco mais. Mas também porque ela definitivamente rompe com a ideia do plano-sequência a serviço de uma estrutura realista do cinema moderno, para se aliar a algo que o cinema contemporâneo investe já há algum tempo, que é usar essa estratégia como um recurso do artifício, do maravilhoso, da violação com os próprios códigos da narratividade.

Continuar lendo

Cinco road movies que me (co)movem

Poucas vezes lembramos disso, mas o o fato é que a palavra “emoção” carrega em sua etimologia a própria noção de movimento dentro dela. E-moção é aquilo que nos co-move. Sua raiz está na palavra em latim emovere, que significa “mover de dentro para fora” ou ainda “entrar em contato”. O cinema, a arte das imagens em movimento e do nosso contato-atrito com essas mesmas imagens, é simultaneamente a arte das imagens que nos movem. (Co)mover-se, como um trem chegando na estação, está na gênese material e imaterial do cinema, e não há gênero cinematográfico que melhor capta essa natureza do que os road movies. Eis aqui uma humilde seleção de cinco desses filmes que me levam junto na viagem e que, talvez, não sejam lidos originalmente dentro desse segmento específico.

The Living End, de Gregg Araki – O cowboy urbano gay nunca acende o cigarro. Interessa a ele menos a fumaça do que a possibilidade de ser ele mesmo a performance da combustão. Mike é seu nome. Niilista, anarquista ou um rebelde sem causa emulando James Dean? Não se sabe. O que se sabe é que Mike era soropositivo no começo dos anos 1990 e, depois de cruzar com Craig, um frustrado crítico de cinema também soropositivo, eles pegam a estrada e se pegam. Tudo ao redor é árido, mas enquanto o pé está no acelerador, há sempre um movimento e o movimento, nos lembra o cinema, indica vida. Tudo que não interessa a esses dois jovens é a chegada, o ponto morto do carro, indicativo de que a doença venceu. Então quando Mike e Craig chegam a algum lugar é para o mar, lugar de eterno movimento, que eles vão. Um dos road movies mais negligenciados da história do cinema. Assim como aqueles homens e seus desejos também foram.

Continuar lendo

A cidade e as brechas ocupadas

Esse texto foi publicado originalmente no catálogo da Mostra Cinema Brasileiro – Anos 2010 – 10 Olhares, idealizado por Eduardo Valente. A mostra reuniu curadorias que agrupavam filmes brasileiros dos anos 2010 a partir de uma força motriz. A força motriz que usei para fazer esses filmes se encontrarem foi a ideia de ocupação desobediente dos espaços. Para ler os textos de todas as curadorias da mostra, clique aqui.

Quando queriam simbolizar uma cidade, os egípcios desenhavam um círculo e, dentro deste, uma cruz. A imagem representa o ponto de intersecção entre estradas distintas, lugar de cruzamento que atraía mercadores que vinham do Norte, Sul, Leste e Oeste. O conceito de cidade surge, portanto, da ideia de encruzilhada. Na modernidade, essa encruzilhada toma a forma das costuras entre linhas de trem, que levam e trazem a força de trabalho, as quebras espaço-temporais e, não se pode esquecer, que efetivamente apresentam o cinema.

De muitas encruzilhadas se erguem os corpos que fogem e escapam ao automatismo domado das cidades tais como as conhecemos hoje. São corpos-fronteira, borderlands, diria Glória Anzaldúa[1] e simultaneamente bodylands, acrescentaria Alessandra Brandão, ambas dando conta de corpos queers vivendo no entrelugar que comporta tanto a “experiência de opressão quanto o respiro da imagem que a ela escapa”[2]. Gente que faz cruzar dentro de si a sensação de não-pertencimento ao território simbólico imposto pela arquitetura do progresso e o desejo de ocupar esses mesmos territórios nos seus próprios termos, criando brechas por dentro de sutis desobediências.

O cinema contemporâneo brasileiro esteve muito atento nos anos 2010 a fazer visível o mal-estar diante de projetos urbanos desenvolvimentistas e não foram poucos os filmes, das mais distintas metragens e propostas estéticas, que de forma direta ou indireta trouxeram questões do direito à cidade para a psicogeografia de seus mapas. Alguns desses filmes fizeram isso colocando em primeiro plano a presença de corpos excessivos, transbordantes, expressões vivas de encruzilhadas. Corpos que precisam criar desvios para que suas demandas por direito à cidade sejam ao mesmo tempo demandas pelo direito de implodir um modelo de cidade que se funda em projetos patriarcais e, por tabela, heteronormativos, tão bem materializados na verticalização fálica dos horizontes urbanos. O que implica não somente no controle policialesco dos corpos, mas na elaboração de projetos de cidade pensados para segregar tudo aquilo que escapa da norma, tudo que rompe com o pacto do controle pelo medo.

Continuar lendo

The Zone of Interest, by Jonathan Glazer

“For every image of the past that is not recognized by the present as one of its own concerns threatens to disappear irretrievably.” Walter Benjamin

1. Some images have the voltage to open up forwards and backwards in time. Perhaps they are the stones thrown by Exu. First, a diagonal shot reveals a cold hall where Commander Rudolf Höss appears to vomit something that is consuming his body from within. There is a cut, and we see the reverse shot of this same space; these shot-reverse shot plays are something the film has used exhaustively until this moment to produce the spatiality of domestic spaces. In the reverse shot, already with his body raised, Höss suddenly becomes aware he is being observed. He gazes at us. Us, the cinema theatre: the dark and submerged hole of History. The forwards and backwards image unfolds like a sheet of paper. Because we must bear in mind that even when the films depict past events, the time period in which they encounter our gaze is always our own. Thus, what we are looking at is inevitably the present time, even if we are being artificially transported back to the diegetic past of history. In The Zone of Interest by Jonathan Glazer, the gesture of breaking with this artifice of immersion into another time is central to the film’s endeavor. Höss looks at us, we who are the present of History. And what is given to us to see from this fracture in time is the Holocaust Museum.

2. In the Holocaust Museum, today, the film reveals a cleansing ritual. The floor is swept, glass is cleaned, dust is vacuumed. Must History be cleaned, or cleared up? Or, even more pointedly to what the film is proposing: how do you sanitize horror?

Continuar lendo

Que bom te ver viva, de Lúcia Murat

Esse texto foi publicado originalmente no livro Documentário Brasileiro – 100 filmes essenciais, a Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), que pode ser comprado aqui.

O olhar e o não olhar para a câmera, as curvas e as retas das falas, a narração que tenta se manter impessoal como um mecanismo de proteção já ensinado ao corpo, simultânea à narração que, em algum momento, não sustenta mais essa fortaleza e desaba em um choro que parecia estar há muito tempo cindindo a parede da represa. O enquadramento escolhido para esses relatos está sempre fechado nos rostos das mulheres entrevistadas, mas não há nada, em nenhum dos depoimentos e na maneira como eles são registrados que indique haver ali uma intenção de tornar a experiência da tortura num relato sentimentalista cristalizado em um tempo que passou, mas foi lavado e está, finalmente, “limpo”. Nada é passado em Que bom te ver viva (1989), de Lúcia Murat. Tudo é presente, tudo atravessa. A memória não é um objeto que possa ser guardado e fechado em livros de História. A memória é um corpo vivo que se atualiza seja pelo direito de poder se lembrar, seja pela necessidade de se fabular sobre ela. E o filme de Murat usa ambos os recursos.

Continuar lendo

Terrorismo narrativo para bagunçar a matemática da mito máquina*

*Esse texto foi publicado originalmente no catálogo da 2ª edição da Mostra de Cinema Árabe Feminino. Originalmente, ele foi editado em duas colunas paralelas, numa tentativa de simular a estrutura díptica do filme In Vitro. Para lê-lo em sua configuração original, acessem o catálogo aqui.

Possessão é impossibilidade (e, portanto, sempre-já um mito), por Kênia Freitas

É possível possuir a lua? Uma árvore? Uma paisagem? (De volta) Um território expropriado? Um sonho? Um trauma? Memórias coletivas e individuais de uma nação? Em A Space Exodus (Um Êxodo Espacial, Larissa Sansour, 2009), uma bandeira palestina é cravada na lua. Mas quem possui quem quando o filme reencena farsescamente o gesto colonizador cosmológico de Neil Armstrong?
Em Nation Estate (Patrimônio nacional, Larissa Sansour, 2012), é um edifício corporativo que possui toda uma nação ou toda uma nação que possui um edifício corporativo? A reencenação nesse caso se dá na apresentação do território (já despossuído) da Palestina como artifício do biocontrole da “alta vida”. A comida sintética e a paisagem falsa como marcadores da mitologia fundante da geopolítica contemporânea: a soberania do estado nação.
Projetos de possessão que estão de partida fracassados (na ficção fílmica e no mundo). Aos desejos de possuir, as imagens e sons que Sansour cria devolvem deriva absoluta, sem território e sem referências (a palestinauta solta no espaço sideral) e um não-lugar (o elevador, o apartamento, a entrada do edifício-nação esvaziados de qualquer pertença).
“Jerusalém, nós temos um problema”, sem resposta possível.
E uma árvore cresce na terra, uma criança cresce na barriga. Apesar de, ou por causa da, despossessão.

Não negociar o páthos, por Carol Almeida

A Space Odissey. A Space Exodus. A diferença entre a Odisseia e o Êxodo em suas tramas originais nas mitologias greco-romana e judaico-cristã é que a primeira narra o movimento de retorno do herói à sua terra, enquanto o segundo narra o heroísmo de um retorno fictício, pois que a terra para onde se retorna é uma promessa, e não um lugar de onde se partiu. O páthos dos filmes de Larissa Sansour está concentrado na intensidade de uma irmã pária dessas duas narrativas: o Exílio.
Quando o exílio é “congênito”, qual o movimento a ser feito dentro dos filmes? O de retorno a uma terra de onde se partiu? O de saída a uma terra prometida? Nenhum deles. O exílio é o eterno não-lugar, e o não-lugar, para o povo palestino, é uma condição imposta que termina entrando nas veias, produzindo um corpo suspenso no espaço e no tempo: não se consegue voltar, e não se consegue sair.
Se nos dois primeiros filmes da artista o páthos do exílio é manifesto por duas mulheres que se inserem em um espaço amorfo (a Lua de Space Exodus, o edifício corporativo de Nation Estate), nos dois filmes seguintes (In the Future They Ate from the Finest Porcelain e In Vitro) essas mulheres se colocam em um território povoado por uma memória simbólica, carregada de figuras humanas e não-humanas que condensam uma contra-narrativa palestina.
De todas essas figuras, uma chama atenção em ambos os filmes: o círculo escuro. Trata-se de um globo ou de um buraco? Espaço já preenchido ou ainda passível de preenchimento? Seria a própria figuração da Lua, o satélite que se projeta como ilha utópica? Há aí um outro monólito que inaugura uma nova sinfonia de Assim falou Zaratustra.

Continuar lendo

Zona de Interesse, de Jonathan Glazer

“Pois irrecuperável é cada imagem do presente que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela.” Walter Benjamin

  1. Algumas imagens têm a voltagem de se abrirem para frente e para trás no tempo. Talvez sejam elas as pedras que Exu atira. Então, primeiro a câmera filma um corredor frio em diagonal onde o comandante Rudolf Höss parece vomitar algo que lhe consome o corpo. Um corte e vemos o contraplano desse mesmo espaço, algo (os jogos de plano e contraplano) que o filme até então elaborou exaustivamente para produzir a espacialidade dos espaços domésticos. No contraplano, já com o corpo erguido, Höss subitamente tem a consciência de estar sendo visto. Ele nos olha. Nós, a sala de cinema: o buraco escuro e submerso da História. A imagem para frente e para trás se abre assim como uma folha. Porque é preciso ter em mente que mesmo quando os filmes são de época, a época em que eles chegam ao nosso olhar é sempre a nossa. Portanto, é inevitavelmente para o presente aquilo que visamos, ainda que artificialmente sejamos transportados para o passado diegético da história. Em Zona de Interesse, de Jonathan Glazer, o gesto de romper com esse artifício de imersão num tempo outro é central ao empreendimento do filme. Höss nos olha, nós, o presente da História. E o que nos é dado a ver a partir dessa fratura temporal é o Museu do Holocausto. Hoje.
  2. No Museu do Holocausto, hoje, o filme revela um ritual de faxina. Se varre o chão, se limpa os vidros, se aspira o pó. A História precisa ser limpa ou passada a limpo? Ou, ainda mais contundente àquilo que o filme propõe: como se higieniza o horror?
Continuar lendo

Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles

Bacurau1

Algumas coisas que estão nas imagens e palavras de Bacurau precisam ser vistas e ouvidas com mais atenção. Talvez, a mais crucial das visualizações e verbalizações do filme aconteça quando surge no quadro, aparecendo e desaparecendo no campo como um objeto estranho, de movimento artificial, uma pequena nave espacial. “Parecia um disco voador de filme antigo. Mas era um drone. Fica de olho no céu”, diz Damiano, o morador que primeiro testemunha esse objeto. Não há segundas leituras aí. Não se trata de uma nave espacial. Não se trata de coisa de filme antigo. Se trata de um drone. Não tem alegoria. Ironia – sim – tem – bastante. Mas alegoria não. “Fica de olho no céu”, ele avisa. Levanta o olho para além daquilo que você se acostumou a ver.

Continuar lendo

Divino amor, de Gabriel Mascaro

Divino amor2

“Foi Deus quem me deu”. Os adesivos já estão nos carros, esses objetos que pesam, poluem e param no trânsito. Param no drive-thru da fé. “Quem tem fé não tem dúvida”, diz a voz narradora, a criança que nos conta a história de Divino amor, uma voz estranha, incômoda, um desconforto dado que voltará no final do filme como um despreparo nosso diante do que virá. “Quem tem fé não tem dúvida”, diz essa voz. Mas o que ela não diz, e o que está em cena, é que fé nasce da dúvida. É pelas brechas, pelas fendas do coração, no espaço que não se preenche pela razão, que a fé se cola ao corpo. A fé pode preencher o corpo? O pode que um corpo? Spinoza, Nietzsche e Deleuze perguntam. Mbembe responde: o corpo pode morrer pelo Estado. Não apenas assassinado pelo Estado, mas em nome dele.

Necropolítica. Do projeto capitalista-colonial da vigilância e controle dos corpos negros, periféricos, desejantes, incontroláveis, dos corpos que pertencem ao Estado Laico da Igreja, controle dos corpos que passam pela rua, pela quebrada, por hospitais, pelas redes sociais, por postos do INSS e por bancos, sejam eles de dados ou de dinheiro. Controle dos corpos que atravessam os detectores de gravidez, do estado civil heteronormativo, de cesáreas que cortam a carne tão mecanicamente como num açougue, como num despacho de cartório. Não há parto humanizado ou burocracia humanizada. Burocracia humanizada é privilégio. Privilégio é não precisar da fé. É não precisar se sustentar nela para passar a primeira, segunda, terceira, quarta marcha e seguir. Continuar lendo