The Zone of Interest, by Jonathan Glazer

“For every image of the past that is not recognized by the present as one of its own concerns threatens to disappear irretrievably.” Walter Benjamin

1. Some images have the voltage to open up forwards and backwards in time. Perhaps they are the stones thrown by Exu. First, a diagonal shot reveals a cold hall where Commander Rudolf Höss appears to vomit something that is consuming his body from within. There is a cut, and we see the reverse shot of this same space; these shot-reverse shot plays are something the film has used exhaustively until this moment to produce the spatiality of domestic spaces. In the reverse shot, already with his body raised, Höss suddenly becomes aware he is being observed. He gazes at us. Us, the cinema theatre: the dark and submerged hole of History. The forwards and backwards image unfolds like a sheet of paper. Because we must bear in mind that even when the films depict past events, the time period in which they encounter our gaze is always our own. Thus, what we are looking at is inevitably the present time, even if we are being artificially transported back to the diegetic past of history. In The Zone of Interest by Jonathan Glazer, the gesture of breaking with this artifice of immersion into another time is central to the film’s endeavor. Höss looks at us, we who are the present of History. And what is given to us to see from this fracture in time is the Holocaust Museum.

2. In the Holocaust Museum, today, the film reveals a cleansing ritual. The floor is swept, glass is cleaned, dust is vacuumed. Must History be cleaned, or cleared up? Or, even more pointedly to what the film is proposing: how do you sanitize horror?

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Que bom te ver viva, de Lúcia Murat

Esse texto foi publicado originalmente no livro Documentário Brasileiro – 100 filmes essenciais, a Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), que pode ser comprado aqui.

O olhar e o não olhar para a câmera, as curvas e as retas das falas, a narração que tenta se manter impessoal como um mecanismo de proteção já ensinado ao corpo, simultânea à narração que, em algum momento, não sustenta mais essa fortaleza e desaba em um choro que parecia estar há muito tempo cindindo a parede da represa. O enquadramento escolhido para esses relatos está sempre fechado nos rostos das mulheres entrevistadas, mas não há nada, em nenhum dos depoimentos e na maneira como eles são registrados que indique haver ali uma intenção de tornar a experiência da tortura num relato sentimentalista cristalizado em um tempo que passou, mas foi lavado e está, finalmente, “limpo”. Nada é passado em Que bom te ver viva (1989), de Lúcia Murat. Tudo é presente, tudo atravessa. A memória não é um objeto que possa ser guardado e fechado em livros de História. A memória é um corpo vivo que se atualiza seja pelo direito de poder se lembrar, seja pela necessidade de se fabular sobre ela. E o filme de Murat usa ambos os recursos.

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Zona de Interesse, de Jonathan Glazer

“Pois irrecuperável é cada imagem do presente que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela.” Walter Benjamin

  1. Algumas imagens têm a voltagem de se abrirem para frente e para trás no tempo. Talvez sejam elas as pedras que Exu atira. Então, primeiro a câmera filma um corredor frio em diagonal onde o comandante Rudolf Höss parece vomitar algo que lhe consome o corpo. Um corte e vemos o contraplano desse mesmo espaço, algo (os jogos de plano e contraplano) que o filme até então elaborou exaustivamente para produzir a espacialidade dos espaços domésticos. No contraplano, já com o corpo erguido, Höss subitamente tem a consciência de estar sendo visto. Ele nos olha. Nós, a sala de cinema: o buraco escuro e submerso da História. A imagem para frente e para trás se abre assim como uma folha. Porque é preciso ter em mente que mesmo quando os filmes são de época, a época em que eles chegam ao nosso olhar é sempre a nossa. Portanto, é inevitavelmente para o presente aquilo que visamos, ainda que artificialmente sejamos transportados para o passado diegético da história. Em Zona de Interesse, de Jonathan Glazer, o gesto de romper com esse artifício de imersão num tempo outro é central ao empreendimento do filme. Höss nos olha, nós, o presente da História. E o que nos é dado a ver a partir dessa fratura temporal é o Museu do Holocausto. Hoje.
  2. No Museu do Holocausto, hoje, o filme revela um ritual de faxina. Se varre o chão, se limpa os vidros, se aspira o pó. A História precisa ser limpa ou passada a limpo? Ou, ainda mais contundente àquilo que o filme propõe: como se higieniza o horror?
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Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles

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Algumas coisas que estão nas imagens e palavras de Bacurau precisam ser vistas e ouvidas com mais atenção. Talvez, a mais crucial das visualizações e verbalizações do filme aconteça quando surge no quadro, aparecendo e desaparecendo no campo como um objeto estranho, de movimento artificial, uma pequena nave espacial. “Parecia um disco voador de filme antigo. Mas era um drone. Fica de olho no céu”, diz Damiano, o morador que primeiro testemunha esse objeto. Não há segundas leituras aí. Não se trata de uma nave espacial. Não se trata de coisa de filme antigo. Se trata de um drone. Não tem alegoria. Ironia – sim – tem – bastante. Mas alegoria não. “Fica de olho no céu”, ele avisa. Levanta o olho para além daquilo que você se acostumou a ver.

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Divino amor, de Gabriel Mascaro

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“Foi Deus quem me deu”. Os adesivos já estão nos carros, esses objetos que pesam, poluem e param no trânsito. Param no drive-thru da fé. “Quem tem fé não tem dúvida”, diz a voz narradora, a criança que nos conta a história de Divino amor, uma voz estranha, incômoda, um desconforto dado que voltará no final do filme como um despreparo nosso diante do que virá. “Quem tem fé não tem dúvida”, diz essa voz. Mas o que ela não diz, e o que está em cena, é que fé nasce da dúvida. É pelas brechas, pelas fendas do coração, no espaço que não se preenche pela razão, que a fé se cola ao corpo. A fé pode preencher o corpo? O pode que um corpo? Spinoza, Nietzsche e Deleuze perguntam. Mbembe responde: o corpo pode morrer pelo Estado. Não apenas assassinado pelo Estado, mas em nome dele.

Necropolítica. Do projeto capitalista-colonial da vigilância e controle dos corpos negros, periféricos, desejantes, incontroláveis, dos corpos que pertencem ao Estado Laico da Igreja, controle dos corpos que passam pela rua, pela quebrada, por hospitais, pelas redes sociais, por postos do INSS e por bancos, sejam eles de dados ou de dinheiro. Controle dos corpos que atravessam os detectores de gravidez, do estado civil heteronormativo, de cesáreas que cortam a carne tão mecanicamente como num açougue, como num despacho de cartório. Não há parto humanizado ou burocracia humanizada. Burocracia humanizada é privilégio. Privilégio é não precisar da fé. É não precisar se sustentar nela para passar a primeira, segunda, terceira, quarta marcha e seguir. Continuar lendo

Democracia em vertigem, de Petra Costa

Democracia em vertigem

Não há vertigem sem a iminência da queda. Não há possibilidade de queda sem ao menos a sensação – ou certeza – do abismo adiante. Portanto, quando se fala em Democracia em vertigem, imediatamente recai sobre o título o peso de estrutura vertical que a palavra “vertigem” carrega. O quão vertiginoso é o precipício em questão? Qual a profundidade do buraco de que se está falando? Percorrer o caminho da vertigem requer, portanto, um mergulho no abismo. E, no entanto, o documentário que surge com esse título sobrevoa a grande cratera democrática sem intenção nenhuma de descer para perto do chão, mantendo-se segura e confortável tal como um controlado e estável voo de drone.

A proposta panorâmica de compilar em duas horas o que se passou no Brasil desde as eleições de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002 – concentrando-se mais especificamente nos acontecimentos pós as chamadas Jornadas de Junho de 2013 – dialoga muito bem com uma certa gramática já familiar das redes sociais em criar apontamentos sintéticos atravessados por frases de efeito de poética duvidosa – Lula é descrito, por exemplo, como “um escultor cujo material é a argila humana” –, em que se tenta criar uma comunicação simples e acessível de acontecimentos bastante intricados.

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Tremor Iê, de Lívia de Paiva e Elena Meirelles (Mostra Tiradentes)

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A respiração é difícil, porque o tempo para respirar parece ser curto demais entre uma onda e outra. Essa onda e a outra e a que vem logo em seguida estão tentando afogar o nosso imaginário. Mas de que imaginário estamos falando aqui? Em Tremor Iê, em que assistimos ao reencontro entre duas mulheres separadas por uma ação violenta contra seus corpos, é possível falar de dois imaginários que estão postos dentro e fora de quadro: o primeiro é circunstancial, diz respeito a um imaginário elaborado a partir de um certo mal-estar, uma sensação de que alguma curva estranha foi feita no país um pouco antes, durante e principalmente depois das chamadas Jornadas de Junho de 2013. De lá pra cá, me parece sintomático que o cinema brasileiro tenha produzido imagens de um desassossego distópico, onde só seria possível lidar com o real a partir de procedimentos artificiais, não somente pela invenção de um presente-futuro especulado a partir de códigos clássicos da ficção científica, como de um regime de atuação que foge várias vezes do naturalismo e parte para pensar os corpos como manifestações dessa artificialidade.

Usando as palavras que Claudia Mesquita escreveu no artigo que ela publicou no catálogo da mostra Brasil Distópico: “A encenação de presentes incertos e a especulação de ‘futuros’ têm se tornado veículo, no cinema brasileiro recente, para figurações distópicas em que a experiência em grandes cidades brasileiras recebe tons sombrios, por vezes pós-apocalípticos. O isolamento espacial, social e político marcam os modos como alguns personagens aparecem em cena, maquinando revoltas, vinganças, intrusões, sem horizonte utópico”. É inevitável que o filme de Lívia de Paiva e Elena Meirelles se localize dentro dessas “figurações distópicas” do cinema brasileiro contemporâneo se pensarmos sobre que nuvens espessas sua imaginação é construída. A própria cidade de Fortaleza, onde o filme se passa, tem sido palco ela mesma de algumas das coreografias mais nonsenses e delirantes do mundo que convencionamos chamar de real, como também de algumas das experimentações mais arriscadas nesse campo da fabulação distópica, a ver, por exemplo, curtas-metragens recentes feitos na cidade como Boca de Loba, de Bárbara Cabeça, Cartuchos de Super Nitendo em Anéis de Saturno, de Leon Reis e, de certa forma, o próprio Antes da encanteria,  das mesmas realizadoras, junto ao coletivo Chá das Cinco.

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Temporada, de André Novais

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Juliana tem medo de altura. Há outros medos também: de escorpião, do salário não cair e, sobretudo, medo do abandono. A temida derrelição, como diria a poeta Hilda Hilst. Mas aqui é preciso dizer que ela não gosta de altura. Porque na cena em que isso se revela, há ali ao lado um rapaz desconhecido que coloca suas duas mãos firmes na escada que dá pra laje da casa e diz: “Pode ir, sô. Eu seguro.” A sequência que começa no momento em que Juliana respira fundo e sobe a escada é somente a primeira de uma série de outras em que se manifestam os dois estatutos fundamentais de Temporada: contemplação e presença. Leia-se: a possibilidade de olhar para o mundo sob outra perspectiva que se dá partir do contato humano, da confiança nesse contato. Juliana sobe e lá do topo da laje ela e esse moço podem observar a cidade. “Vista bonita”, ela diz. Eles olham. E nós olhamos eles olharem.

Pausa na imagem. Esses corpos que olham, esse enquadramento de pessoas em estado de contemplação, a quem costuma pertencer essa cena? Essa paisagem olhada, quem a define enquanto paisagem? A narrativa da vizinhança gentil, atenciosa e cuidadosa é tradicionalmente oferecida – ou tradicionalmente negada – a quem?

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O animal cordial, de Gabriela Amaral Almeida

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A cinematografia brasileira independente é rica em tentar dar conta, às vezes com sucesso, outras nem tanto, do sujeito socialmente tido como não-cordial. Leia-se, o foco está quase sempre em quem precisa de alguma forma se rebelar ou driblar o sistema em nome de uma causa maior e, com frequência, de um discurso que convoque o coletivo, a justiça, algum tipo de reparação de danos. A câmera está sempre atenta a esses sujeitos, precisamos nos vingar na tela de cinema, ou mesmo nos frustrar diante dela, com a condição de sermos nós, uma entidade disforme do pensamento de esquerda, a estarmos em cena. Portanto, quando Gabriela Amaral Almeida decide centrar sua atenção naquilo que até então entendíamos como o contraplano desse cinema, quando finalmente essa câmera se vira para o “inimigo” e, enquadrando diversos tipos de close nele com a precisão de quem sabe amolar uma faca, o efeito que esse sujeito nos provoca é antes de surpresa, uma inquieta curiosidade talvez, que exatamente de repulsa.

Não somos tão familiares assim a ele enquanto cuidado maior da imagem, o sujeito da camisa por dentro da calça, de todos os botões fechados, do cabelo sem fio fora do lugar, do controle emocional medido em dentes trincados, da falsa cordialidade treinada na frente do espelho. Seria ele o nosso temeroso cidadão de bem? Ou levantar essa hipótese é em si escorregar no risco de interpretar a partir do lado da câmera com o qual sempre nos acostumamos a estar? Tudo fica mais confuso, e excitante, porque também não somos assim tão familiares ao corpo que opta por negociar com esse sujeito, neste caso, o da mulher que entende os jogos de poder postos sobre a mesa e oscilando entre o desejo e o instinto de sobrevivência, mantém sempre ambígua sua relação de fidelidade com essa instituição “culturalmente humana” do macho obcecado pela situação de total controle. De todas as formas, somos de fato pouco familiares ao cinema que essa diretora se propõe a fazer: um que se utiliza de todos os códigos e signos do gênero terror, neste caso mais especificamente dos slashers films, para dar conta dessa alteridade na imagem de quem, na superfície das coisas, se põe como uma figura padrão.

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Jeanne Dielman e Os encontros de Anna, de Chantal Akerman

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O padrão do papel de parede do hall de entrada, o piso da cozinha, o pesado guarda-roupa de madeira do quarto, o mármore do banheiro, o lustre da sala, as cortinas, várias cortinas, abrindo e fechando o espaço para o mundo, mas sobretudo fechando. Cobertas de cama que guardam o pó do apartamento e de algumas tantas frustrações, móveis que foram herdados da família que achava que ela poderia ter conseguido marido melhor. Conheço a textura, as dobras e o cheiro mofado dessa casa como se fosse minha, porque ela, por força do imaginário, é minha de fato. Conheço essa casa porque ela não apenas é, como toda construção de espaço cinematográfica, uma narrativa em si. Mas conheço e sinto esse ambiente como se fosse meu porque ele me fala de uma condição de ser mulher que não foi escolhida, mas herdada, tal como os móveis da casa. Essa condição aqui se reduz a um endereço: 23 Quai du Commerce, 1080, Bruxelles. Dentro dela, vive Jeanne Dielman, que controla os objetos da casa como a casa controla seu corpo. Até que.

A decoração anódina do quarto de hotel está espelhada no olhar perdido e vago de uma cineasta cansada, viajando de cidade em cidade na Europa com uma valise em que guarda quase nada de roupa e um frasco de perfume que ajuda a manter algo de dignidade entre uma e outra estação de trem. Circulando entre portas automáticas, vagões e recepções de hotéis onde funcionários parecem estar sempre acometidos por uma apatia robótica, Anna/Anne Silver se move, ela mesma, como uma androide. Uma, porém, que pode ir e vir, deslocamentos solitários como o suprassumo da emancipação feminina. Onde chega, ela abre janelas. Talvez seja a tentativa de que algo lá fora a mova por dentro. Talvez seja para jogar aquilo que lhe move por dentro pra fora da janela, em queda livre. Mas de todas as hipóteses me agrada pensar que Anne busca absolutamente nada quando abre essas janelas, e só repete o gesto como um tique de uma geração que recém adquiriu a possibilidade de circular pelos espaços públicos. Colônia, Bruxelas, Paris, tanto faz. Só que.
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