Divino amor, de Gabriel Mascaro

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“Foi Deus quem me deu”. Os adesivos já estão nos carros, esses objetos que pesam, poluem e param no trânsito. Param no drive-thru da fé. “Quem tem fé não tem dúvida”, diz a voz narradora, a criança que nos conta a história de Divino amor, uma voz estranha, incômoda, um desconforto dado que voltará no final do filme como um despreparo nosso diante do que virá. “Quem tem fé não tem dúvida”, diz essa voz. Mas o que ela não diz, e o que está em cena, é que fé nasce da dúvida. É pelas brechas, pelas fendas do coração, no espaço que não se preenche pela razão, que a fé se cola ao corpo. A fé pode preencher o corpo? O pode que um corpo? Spinoza, Nietzsche e Deleuze perguntam. Mbembe responde: o corpo pode morrer pelo Estado. Não apenas assassinado pelo Estado, mas em nome dele.

Necropolítica. Do projeto capitalista-colonial da vigilância e controle dos corpos negros, periféricos, desejantes, incontroláveis, dos corpos que pertencem ao Estado Laico da Igreja, controle dos corpos que passam pela rua, pela quebrada, por hospitais, pelas redes sociais, por postos do INSS e por bancos, sejam eles de dados ou de dinheiro. Controle dos corpos que atravessam os detectores de gravidez, do estado civil heteronormativo, de cesáreas que cortam a carne tão mecanicamente como num açougue, como num despacho de cartório. Não há parto humanizado ou burocracia humanizada. Burocracia humanizada é privilégio. Privilégio é não precisar da fé. É não precisar se sustentar nela para passar a primeira, segunda, terceira, quarta marcha e seguir. Continuar lendo

Boi Neon, de Gabriel Mascaro [especial Janela de Cinema]

Boi NeonTudo o que é ar se desmancha em sólido. Como a poeira que sobe e se molda aos corpos daqueles que fazem a poeira subir. Pessoas simultaneamente difusas e densas estão no recorte da câmera e elas não têm uma história a contar além do que está contido nelas mesmas. Elas não têm um lugar de onde partir e para onde chegar. É a estrada sem começo e fim o que as constitui. Boi Neon é, portanto, um filme sobre a sensibilidade do ar enquanto corpo, do corpo enquanto ar, e essa é a única transformação, e o único caminho, que importa ao diretor Gabriel Mascaro em seu mais novo longa. O que interessa aqui é a transformação que se basta dentro do seu próprio desejo de transformar.

Os corpos-sentidos e corpos-cenários do filme são construídos a partir de seus respectivos desejos. O de um vaqueiro que quer ser costureiro, de uma menina que sonha em ter cavalos e o da sua mãe que, entre performances onde se antropomorfiza em seres equestres, espera não perder a ternura a despeito dos coices que leva e dá. Fosse uma narrativa convencional, era de se esperar que esses desejos movessem os personagens entre os momentos do querer e o da realização/frustração. No lugar de realizar esse trajeto, Mascaro opta por acompanhar essas pessoas sem delas cobrar resoluções, sem exigir nem mesmo que estabeleçam as relações mais óbvias entre elas. E faz isso a partir de um ostentoso ensaio estético-político sobre os papeis sociais desses corpos e a relação simbiótica entre eles e os animais que tangem.

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Ventos de Agosto, de Gabriel Mascaro

Ventos de Agosto

:: Especial – Festival de Brasília ::
:: Especial – Mostra SP ::

Há sete anos, Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso se lançaram juntos no cinema com o documentário KFZ-1348. De lá pra cá, ambos tomaram rumos distintos que investigavam e experimentavam, cada um à sua maneira, as demarcações do cinema documental quando ele se apropria da ficção e de dispositivos para criar um debate já há muito tempo posto – não apenas pelo cinema – sobre até que ponto o real é percebido apenas após ser atravessado pela fantasia e, mais acintosamente, até quando o olhar de quem filma é senhor dos significados. Pacific (Pedroso) e Doméstica (Mascaro) fizeram isso muito bem. Mas os diferentes caminhos que eles tomaram se tornam muito claros quando da cena de abertura de seus novos longa-metragens, classificados ambos como ficção, mas ambos igualmente enraizados no documental.

Pedroso abre Brasil S/A com a opulenta imagem de um navio de carga rompendo o mar. Em Ventos de Agosto, Mascaro também utiliza uma embarcação para introduzir seu cenário. Só que no lugar da nau gigante e impessoal, o que vemos é um barquinho de pescador bem modesto carregando uma jovem que passa por um mangue para depois chegar ao mar aberto. Pedroso fala das macropolíticas, Mascaro tenta lidar com o microcosmo das relações. Navegam ambos pelo fetiche da imagem, mas há algo em Ventos de Agosto por demais imaterial, além do próprio vento, que faz desse filme uma experiência muita mais próxima de cadernos etnográficos a observar e registrar o ambiente em suas idiossincrasias que exatamente de uma proposta narrativa que ofereça alguma questão ou conflito direto.

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O som que ficou ao redor no cinema nacional em 2013

Educacao

Carinhosamente tomo emprestado o título do filme mais importante do ano – importante por tantos motivos que nomeá-los aqui seria escrever sobre outra história – para fazer uma retrospectiva do que vi no cinema nacional em 2013 e relacionar afetivamente essa experiência aos sons que ficaram comigo de todos eles.

Primeira observação: em retrospecto, vejo 2013 como um ano particularmente explosivo para o cinema nacional. O petardo foi plantado lá no começo de janeiro com a estreia do próprio Som ao Redor e seu inesperado sucesso comercial para um filme lançado fora do modelo Globo Filmes. O barulho advindo dele está ecoando até agora pelas poucas salas a exibir esse cinema de que vou falar.

Segunda observação: alguns dos longas de que trato aqui ainda não estrearam em circuito comercial, mas se neste texto estão é porque me causaram um impacto tão positivo que não poderia deixar de contar como uma experiência vivida durante 2013. São eles: Amor, Plástico e Barulho; Avanti Popolo; Depois da Chuva e Riocorrente. Todos previstos para um igualmente explosivo 2014. Assim se espera.

Terceira observação: O que se segue é um texto de ordem 100% passional. Não esperem análises.

Quarta e última observação: as comédias da Globo Filmes #nãomerepresentam.

Tendo tudo isso dito, lembremos que:

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Doméstica, de Gabriel Mascaro

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O título indica que as protagonistas desse documentário são todas empregadas domésticas. Ledo engano. Se há neste filme algum tipo de protagonismo, ele só pode caber mesmo nessa estranha e desconfortável intimidade que temos* com quem observa essas pessoas. É o olhar, e não quem se olha, que surge em superclose e sai da tela, derramando em nosso colo e consciência um café há séculos requentado por uma sociedade apegada às suas lembranças escravocratas.

E é no recorte desse olhar que o diretor Gabriel Mascaro cria seu trabalho mais pungente, cinematograficamente ousado e maduro. Ao entregar câmeras para adolescentes de várias partes do país, pedindo que eles filmem suas empregadas domésticas (o que em um dos casos vem a ser um empregado doméstico), Mascaro teve em suas mãos um material que pesquisas acadêmicas nos campos da sociologia e antropologia deveriam tomar como diamante e, quem sabe, exemplo de metodologia daqui pra frente.

Colocando esses jovens como diretores de cena, eliminando assim as implicações de estranhamento entre o diretor e seu objeto, Doméstica tem acesso livre à caverna dos debates esquecidos. Esse lugar que conhecemos no tato, mas sobre o qual nunca jogamos luz.

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