Ventos de Agosto, de Gabriel Mascaro

Ventos de Agosto

:: Especial – Festival de Brasília ::
:: Especial – Mostra SP ::

Há sete anos, Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso se lançaram juntos no cinema com o documentário KFZ-1348. De lá pra cá, ambos tomaram rumos distintos que investigavam e experimentavam, cada um à sua maneira, as demarcações do cinema documental quando ele se apropria da ficção e de dispositivos para criar um debate já há muito tempo posto – não apenas pelo cinema – sobre até que ponto o real é percebido apenas após ser atravessado pela fantasia e, mais acintosamente, até quando o olhar de quem filma é senhor dos significados. Pacific (Pedroso) e Doméstica (Mascaro) fizeram isso muito bem. Mas os diferentes caminhos que eles tomaram se tornam muito claros quando da cena de abertura de seus novos longa-metragens, classificados ambos como ficção, mas ambos igualmente enraizados no documental.

Pedroso abre Brasil S/A com a opulenta imagem de um navio de carga rompendo o mar. Em Ventos de Agosto, Mascaro também utiliza uma embarcação para introduzir seu cenário. Só que no lugar da nau gigante e impessoal, o que vemos é um barquinho de pescador bem modesto carregando uma jovem que passa por um mangue para depois chegar ao mar aberto. Pedroso fala das macropolíticas, Mascaro tenta lidar com o microcosmo das relações. Navegam ambos pelo fetiche da imagem, mas há algo em Ventos de Agosto por demais imaterial, além do próprio vento, que faz desse filme uma experiência muita mais próxima de cadernos etnográficos a observar e registrar o ambiente em suas idiossincrasias que exatamente de uma proposta narrativa que ofereça alguma questão ou conflito direto.

Existem três momentos bem marcados no filme. Na primeira parte, somos introduzidos a um casal de jovens que habita uma praia no litoral do estado de Alagoas (as locações são nas mesmas praias do curta pernambucano também apresentado este ano em Brasília, Sem Coração). No cenário idílico do mar de enseada e de coqueiros rasgando o céu, ela usa Coca-Cola para bronzear a pele enquanto escuta punk rock em fita cassete (quase um clipe condensado dos anos 80), ele mergulha no oceano de cueca branca para pescar lulas. Ambos os corpos torneados desses jovens mulatos brasileiros são postos em total exposição quando o assistimos deitados nus sobre uma pilha de cocos. Praticamente uma tela de Di Cavalcanti. A escolha dos atores Dandara de Morais e Geová Manoel dos Santos é muito pensada para esse fim. A relação entre essas pessoas e o ambiente é simbiótica, a ponto de se poder afirmar que, neste momento do longa, o vemos como personagens-paisagens. A composição lasciva é prioritária.

Essa tela modernista tropical dá então lugar ao impressionismo, quando entra em cena o rapaz da cidade que chega ao local para captar o som do vento na região. E ele é o próprio diretor Gabriel Mascaro. Vemos então essa figura por muito tempo ora borrada na chuva, ora interagindo com a população local tentando registrar ventos, músicas, conversas. Uma aproximação com o personagem do rapaz pescador é criada, o diretor e um de seus protagonistas são vistos juntos, conversando sobre o pulmão das pedras. A presença patente do documental na pele do cineasta em cena é quebrada quando, em mais uma sequência filmada com tons impressionistas, vemos esse rapaz desaparecer numa noite de maré alta e violenta.

E eis que surge então um defunto. E paralelo a isso, a obsessão de Jeison (Geová Manoel dos Santos) pelos corpos já apodrecidos, sua relação de carinho e cuidado com o falecido recém achado e o primeiro atrito com Shirley (Dandara de Morais), que está ali, viva, linda, vendo seu protagonismo ser substituído pela presença da morte. É o momento mais interessante do filme enquanto construção de narrativa.

Os elementos dados são inúmeros: pode-se falar de retenção e vazão dos sentimentos – na imagem da água do mar que avança impiedosamente sobre o litoral -, da morte do autor, que se coloca em cena numa posição confortável de mero observador, e dos ventos como representação de tudo que é impalpável. Mas essas pontas soltas, nunca amarradas, servem mais à estética e ética naturalista do filme que exatamente a construir debates. A discussão se dilui nas imagens que se encerram em si mesmas. Filmar Shirley tirando o biquíni e projetando a câmera quase invadindo sua bunda poderia servir a todo um contexto sobre violação, ocupação, intrusão. Esse contexto não existe. O que há é apenas contemplação. E, nela, uma certa apatia de ideias, como quem passa o dia hipnotizado pelo ir e vir do mar.

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