:: Especial – Festival de Brasília ::
Não são poucos os escritores que já se debruçaram sobre a inevitabilidade do choque corpo a corpo entre memória e invenção. Também não são poucos os pesquisadores que começaram a discutir as chamadas “políticas do afeto” no cinema contemporâneo brasileiro, relacionando esse afeto à construção fictícia de uma memória compartilhada a partir de uma recente politização dos espaços privados. Ela Volta na Quinta põe em combustão a memória e sua invenção, o afeto e sua identidade. E usa de extratos reais da memória – relações que já existem dentro da própria família do diretor – para questionar e colocar essa dileção na berlinda, numa ação, por sua vez, política.
Explica-se. O filme de André Novais tem seus próprios pais, Dona Zezé e seu Norberto, como protagonistas de uma crise conjugal após 38 anos de casados. A crise, suas causas e consequências, são fictícias, roteirizadas. No entanto, o trato entre os membros da família, tiques adquiridos após muitos anos de convivência, permanecem. O que eles trocam em cena é resultado de uma intimidade intrínseca a todos. Novais vai usar dessa relação já firmada entre ele, seus pais, o irmão e a namorada para criar um roteiro diferente à vida de cada um. Faz isso com uma coragem que é compartilhada por todos os membros envolvidos no processo. Faz isso também do lugar de fala de um cineasta negro classe média morador de uma grande cidade (Belo Horizonte). E partindo de todos esses pontos, ao escrever uma história sobre o fim do amor, ele vai justamente fazer um dos filmes mais sinceramente afetuosos já vistos nesses últimos anos.
Essa construção fantasiosa da memória começa já nas primeiras imagens do filme. Uma sequência de fotos desbotadas que revela os primeiros anos de namoro entre Zezé e Norberto, o nascimento do primeiro, segundo filho, os ambientes domésticos, o cachorro que os irmãos tinham na infância. Na trilha, o soul de Cassiano, cantor por sua vez esquecido da memória musical brasileira. O ponto de partida pressupõe, portanto, que o casal protagonista vem de anos de uma relação amorosa e que aquela família viveu plenamente a experiência da ternura. E tudo isso parece ser, eis a palavra perigosa, verdade. Corta para a imagem da mãe olhando a janela, colocando a mão sobre a cabeça e caindo no chão. Logo depois, num plano dentro do quarto do casal, onde dona Zezé e seu Norberto se deitam após trocarem algumas palavras desinteressadas entre eles. Os conflitos estão dados.
A câmera, importante frisar, não está ali para ser uma observadora documental, sua posição assume quase sempre esse ponto de partida fictício, colocada próxima e rente aos personagens, bastante cientes de sua presença. Novais conta uma história desse núcleo familiar inventado no compasso paciente e manso que parece ser próprio da família “real”. Filma não somente a interação dentro do espaço compartilhado por seus pais, como também pequenos extratos do cotidiano dos dois filhos, sendo um deles o próprio diretor, e seus respectivos núcleos de relações afetivas e conflitos (conversas sobre preço de aluguel e trânsito na cidade de Belo Horizonte, o jovem casal que debate sobre ter ou não ter filho antes de adquirir uma casa própria, os passeios de fim de semana).
O longa nos convida a todo momento para se sentir confortável na sala de estar dessas pessoas que, aos poucos, se tornam mais e mais próximas. É excepcional o trabalho de direção de Novais ao conseguir, usando de todas os privilégios e desvantagens de sua proximidade com seus atores, extrair deles uma projeção natural de seus discursos, quebrando como que por mágica (leia-se, talento extraordinário de Novais) aquela conhecida relação intimidadora provocada por essa máquina pesada do olho gigante que é a câmera. Os diálogos partem de ideias roteirizadas, mas nunca engessadas. O diretor risca o fósforo e deixa o fogo queimar no seu ritmo. Com isso, consegue fazer com que o fluxo das conversas seja absolutamente espontâneo, o que facilmente se pode confundir com o cinema documental. Não é.
A história da vida privada dessa família é também a história do direito à ficção, da memória marcadamente inventada, de poder usar as construções simbólicas da realidade para desafiar a ideia de que existe, de fato, alguma realidade. O uso da música a pontuar toda essa construção no filme é também bastante significativo na medida em que é por ela muitas vezes que sublimamos o real e emolduramos nossas vidas em versos alheios. Com Cassiano, Roberto Carlos, Paulinho da Viola e mesmo Justin Bieber dublado por cabras cantoras, o filme revela sem muito esforço quais os roteiros que criamos em nossas rotinas.
Sobem os créditos finais. Faye Adams, cantora referência do rhythm and blues dos anos 50, praticamente chora a letra de Shake a Hand. Música que fala sobre segundas chances. Já pode ligar a luz da sala? Melhor não. O sofá é confortável, tem refrigerante na geladeira. Deixa o filme ficar mais um pouco.