Acima das Nuvens, de Olivier Assayas

Acima das Nuvens

:: Especial – Mostra SP ::

“A angústia surge do momento em que o sujeito está suspenso entre um tempo em que ele não sabe mais onde está, em direção a um tempo onde ele será alguma coisa na qual jamais se poderá reencontrar.” A frase, famosa, é do psicanalista Jacques Lacan e pode, com precisão, ser aplicada à personagem de Juliette Binoche no novo e brilhante filme de Olivier Assayas, que transforma essa angústia de identidades do sujeito naquele momento em que o vapor da água deixa turva a imagem do espelho.

Maria Enders é uma atriz veterana, presa a uma personagem que a tornou famosa décadas atrás, quando ela tinha 18 anos. O impossível reencontro da pessoa em que ela se tornou com a jovem que ela foi um dia é trabalhada em duas frentes que, com frequência, se entrelaçam e se confundem: na narrativa em primeiro plano, a dualidade é estabelecida com sua jovem assistente, Valentine, interpretada por Kristen Stewart. Na segunda camada, a atriz e sua funcionária ensaiam o texto da peça que tornou Maria popular. Nesse segundo roteiro, uma mulher mais velha, Helena, e sua bela secretária, Sigrid, estabelecem uma relação de obsessão uma pela outra. A priori, o conflito do filme está no fato de que Maria Enders, um dia famosa no papel de Sigrid, agora é chamada para viver Helena. O papel de Sigrid será dado a uma celebridade adolescente de Hollywood, vivida por Chloë Grace Moretz. A priori porque, de fato, as leituras que o filme abre para todos as implicações psicológicas entre as projeções de identidade das personagens são bem mais amplas. E Assayas faz questão de deixar tudo muito diáfano, tal como as nuvens que cortam as montanhas por onde Maria e Valentine caminham.

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A Gangue, de Miroslav Slaboshpitsky

The Tribe

:: Especial Mostra SP ::

A Gangue, grande vencedor da Semana da Crítica em Cannes este ano, já se anuncia formalmente distinto em seu primeiro e ˙único letreiro: “Esse filme é todo expresso em linguagem de surdos-mudos. Não tem, intencionalmente, qualquer legenda ou voz em off”. Construiremos nós os significados de todos os diálogos silenciosos do filme. Essa estratégia se mostra bastante conveniente para um diretor que, do começo ao fim, esgota seu trabalho na ideia de que a forma – nosso completo desconhecimento da linguagem em cena – dará o sentido, leia-se, a sensação de estranhamento e desconforto de quem assiste ao filme e projeta esses mesmos sentimentos no personagem protagonista.

Este é um adolescente novato enviado para uma escola exclusiva de surdos-mudos, onde passará por rituais de iniciação para participar de uma gangue que comete delitos e agencia as duas únicas personagens mulheres do filme, não à toa, ambas jovens prostitutas. O longa de estreia do ucraniano Miroslav Slaboshpitsky cria um modelo esquemático, fincado em uma série de longos planos-sequência meticulosamente coreografados, aliados a cenas de violência gráfica muito pensadas para chocar, mas sem real função para desenhar o caráter de quem os encena.

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Ela Volta na Quinta, de André Novais

Ela Volta

:: Especial – Festival de Brasília ::

Não são poucos os escritores que já se debruçaram sobre a inevitabilidade do choque corpo a corpo entre memória e invenção. Também não são poucos os pesquisadores que começaram a discutir as chamadas “políticas do afeto” no cinema contemporâneo brasileiro, relacionando esse afeto à construção fictícia de uma memória compartilhada a partir de uma recente politização dos espaços privados. Ela Volta na Quinta põe em combustão a memória e sua invenção, o afeto e sua identidade. E usa de extratos reais da memória – relações que já existem dentro da própria família do diretor – para questionar e colocar essa dileção na berlinda, numa ação, por sua vez, política.

Explica-se. O filme de André Novais tem seus próprios pais, Dona Zezé e seu Norberto, como protagonistas de uma crise conjugal após 38 anos de casados. A crise, suas causas e consequências, são fictícias, roteirizadas. No entanto, o trato entre os membros da família, tiques adquiridos após muitos anos de convivência, permanecem. O que eles trocam em cena é resultado de uma intimidade intrínseca a todos. Novais vai usar dessa relação já firmada entre ele, seus pais, o irmão e a namorada para criar um roteiro diferente à vida de cada um. Faz isso com uma coragem que é compartilhada por todos os membros envolvidos no processo. Faz isso também do lugar de fala de um cineasta negro classe média morador de uma grande cidade (Belo Horizonte). E partindo de todos esses pontos, ao escrever uma história sobre o fim do amor, ele vai justamente fazer um dos filmes mais sinceramente afetuosos já vistos nesses últimos anos.

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Branco Sai, Preto Fica, de Adirley Queirós

Branco Sai

:: Especial – Festival da Brasília ::
:: Especial – Mostra SP ::

–> ENTREVISTA DO BLOG COM ADIRLEY QUEIRÓS <–

Eventos de um mês qualquer em 2014 na Distopia Federativa do Brasil. Relatório 34560007 enviado ao futuro: Policial mata ambulante à queima-roupa, é filmado, e a população assiste à cena em seu celular enquanto estoura a pipoca no microondas. Famílias inteiras são despejadas de um edifício por um estado que protege o bem público apenas quando ele é privado. Na intenção de fazer comédia, emissora de TV veste mulheres negras com o manto escravocrata, chama menina branca racista de vítima e trata o único personagem sensato e plácido dessa narrativa, um jogador de futebol negro, como culpado.

Nenhuma dessas cenas está em Branco Sai, Preto Fica, novo filme de Adirley Queirós. Todas estão.

As camadas mais profundas de nosso inconsciente saliente nacional são aqui abertas com um corte transversal a revelar o que herdamos, e vamos deixar de herança, dessa terra em transe. O de cima sobe e o de baixo desce, diria o antropólogo Francisco de Assis França. Adirley entende bem o axioma e faz com ele um longa-metragem com uma consciência extraordinária, ora em grave, ora em agudo, desse presente mal-estar social. A partir de um evento real ocorrido nos anos 80, no baile de black music conhecido como Quarentão, então ponto cultural mais agitado da Ceilândia, Distrito Federal, o filme constrói uma fábula, ou se preferirem, uma ficção científica documental, que acompanha e cruza dois personagens diretamente afetados por uma batida policial dentro desse baile. Suas histórias apontam com precisão para uma reflexão sobre o direito à ocupação dos espaços nas cidades enquanto um direito humano negado diariamente em estádios de futebol, emissoras de TV, elevadores de serviço.

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Pais e Filhos, de Hirokazu Koreeda

Pais e Filhos

Existem poucos diretores no mundo que sabem filmar crianças. Mas existem menos ainda aqueles que sabem entendê-las dentro desse comungado primeiro contexto social, a família. O japonês Hirokazu Koreeda não apenas está em ambas as seletas listas, como é certamente um dos diretores mais importantes da contemporânea cinematografia asiática graças a uma extraordinária consciência de que a imagem é sempre um recorte organicamente ideológico. Em Pais e Filhos, prêmio do Juri em Cannes este ano, Koreeda nos arrebata com um drama cujo grande ponto de virada é justamente a percepção desse recorte por um dos personagens do filme. Há alguém além do próprio diretor que está ali, registrando cenas. E quando um dos protagonistas, objeto desse registro, se nota nas imagens captadas por uma máquina fotográfica, ele finalmente entende a dimensão ideológica de sua representação.

O diretor volta neste filme ao que parece ser tema central em sua obra: a família em sua relação mais íntima de códigos, hábitos e condutas, tal como um dia fez Yasujirô Ozu em seu cinema. Mas ao contrário do mestre Ozu, Koreeda parece ser menos complacente às idiossincrasias familiares e certamente bem menos otimista. Em Pais e Filhos, existem duas famílias, cujos caminhos se cruzam depois que se descobre que houve uma troca de bebês no hospital. Os meninos trocados, agora com seis anos de idade, ainda não têm idade suficiente para fazer escolhas. Responsáveis por essas escolhas estão seus pais, colocados diante da difícil decisão de trocar, ou não, seus filhos.

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O Lobo Atrás da Porta, de Fernando Coimbra

O Lobo Atras da Porta

:: Filme na programação da Mostra SP ::

O clímax do filme acontece logo no começo dele. Mas não sabemos disso. Trata-se de uma cena que aparenta ser uma como outra qualquer. Revisitada no fim da história, agora com a câmera olhando para o outro lado do ambiente, entendemos como o primeiro longa-metragem de Fernando Coimbra é hábil em conter a tensão que, inevitavelmente, irá explodir em algum momento. Num incrível trabalho de montagem que parece ter sido milimetricamente calculado por outro incrível trabalho de roteiro, O Lobo Atrás da Porta sabe inspirar e expirar na hora certa, seu controle de tempo é admirável. E Coimbra faz com isso um filme de gênero, um que não tem tanta tradição no cinema nacional, o suspense policial.

Inspirado numa história real, ainda que o diretor admita ter tomado várias decisões narrativas que fogem ao fato original, o filme parte de uma mãe, vivida por Fabíula Nascimento, que vai buscar sua filha na creche e quando lá chega descobre que a menina foi embora com uma “vizinha”. O caso do desaparecimento da criança logo vai para a delegacia e de lá, a partir dos interrogatórios, vamos aos poucos entendendo quem é quem na trama e o que aconteceu até ali. Existem dois pontos de vistas em flashbacks distintos. Um é narrado sob a perspectiva do pai da menina, Milhem Cortaz, e outro terá como depoente a amante dele, mais uma interpretação de tirar o fôlego de Leandra Leal.

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Amor, Plástico e Barulho, de Renata Pinheiro

Amor Plastico Barulho

:: Filme na programação da Mostra SP ::

A chamada “cultura brega” que rebola com barriguinha de fora pelas periferias do Brasil tem sido um campo bastante estimulante para que a indústria do consumo se aproprie de seus signos mais elementares e os resignifique em produtos prontos para uma classe média alta ávida em consumir referências externas (e de baixo) com o devido filtro do folclórico. Temos festas, ensaios fotográficos em revistas caras e recentemente até uma novela global a se usar desses artifícios.

Pois agora pegue esse coador de onde o brega escorria sem nata no copo de quem o consumia limpo, e jogue ele no lixo. Porque Amor, Plástico e Barulho não olha o brega de cima, de lado ou na diagonal. Olha de frente. E o resultado disso é um filme de personagens que nunca vimos antes, particularmente com mulheres que nunca vimos antes, não pelo menos do lugar de onde elas e seus corpos falam. Jaqueline e Shelly, respectivamente Maeve Jinkings e Nash Laila, nos contam das delícias e desastres de quem acredita que coração só é capaz de rimar com paixão e tesão.

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Dark Blood, de George Sluizer

dark blood

:: Filme na programação da Mostra SP ::

Em 1993, George Sluizer recebeu a notícia de que River Phoenix havia morrido de overdose. Era o ator principal do longa que ele estava filmando. Sluizer fechou o roteiro e guardou os rolos com as cenas já filmadas. O projeto estaria para sempre enterrado não fosse pelo dia de Natal de 2007, quando o próprio diretor sofreu um aneurisma na França. Entrou em coma e sua morte era quase certa. Mas um médico acreditou em sua reabilitação e no primeiro momento em que recuperou consciência, Sluizer pediu para voltar a Los Angeles pois queria terminar o trabalho que havia começado com Phoenix.

Tendo isso dito, é impossível fazer uma revisão deste filme enquanto projeto original. O que o diretor apresenta agora é um esboço do que seria o resultado final não tivesse o protagonista morrido no meio das filmagens. As cenas do roteiro que não foram filmadas são narradas pelo próprio Sluizer enquanto vemos ora imagens congeladas, ora sobras de filme. No entanto, é possível sim criar um estranho paralelo entre essa proposta de roteiro, o filme incompleto que se torna um projeto em si e a própria morte prematura do tal “James Dean da geração X”, além da experiência de quase morte do diretor em questão.

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Ilo Ilo, de Anthony Chen

Ilo Ilo

:: Filme na programação da Mostra SP ::

Os pequenos poderes da classe média, a crise da classe média, as relações familiares da classe média. Estamos no campo dos comportamentos sociais que se reproduzem de Norte a Sul, de Singapura ao Brasil, provando sempre que ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais. Ilo Ilo, Caméra d’Or em Cannes este ano, é um filme que dialoga com muitas das questões latentes em recentes filmes brasileiros como Trabalhar Cansa, O Som ao Redor e o documentário Doméstica e que, não apenas por isso, tem muito a nos falar e o faz de uma maneira delicada e cuidadosa enquanto instrumento crítico.

Trata-se de uma história centrada em uma família da Singapura – mãe, pai e filho – que contrata uma empregada doméstica para cuidar da casa e ao mesmo tempo servir de babá para o menino. Estamos no fim dos anos 90 e essa mãe está grávida, o pai fuma escondido, o menino é mimado e a empregada vem das Filipinas, passaporte guardado na gaveta da patroa – “pra ela não fugir”, justifica a mulher.

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Cortinas Fechadas, de Jafar Panahi e Kambuzia Partovi

Panahi

:: Filme na programação da Mostra SP ::

Atrás das grades. De onde a câmera se encontra no começo do filme entendemos que a Panahi só é hoje dada a possibilidade de discutir seu próprio aprisionamento artístico. E sendo a sua arte o cinema, essa discussão, mais uma vez, estará centrada em colocar à prova a natureza de uma narrativa filmada, desde seus recursos técnicos à construção de personagens. É assim que dando continuidade ao que começou há dois anos com Isto Não É Um Filme, o diretor iraniano que foi condenado em 2010 a prisão domiciliar por seis anos e, pior, 20 anos proibido de fazer cinema, que Panahi burla mais uma vez sua sentença e disserta sobre seu trabalho.

E se Isto Não É um Filme falava sobre o conceito do cinema a partir de sua negação, Cortinas Fechadas fala sobre a negação do próprio autor. Sim, é um filme triste que reflete um pouco um aparente estágio de depressão do diretor. Panahi fala sobre o esquecimento de personagens, o cortinamento de seus filmes, sua certeza de ser incapaz de fazer qualquer coisa senão aquilo e, em algum momento, até mesmo o tópico suicídio é mencionado. Naturalmente, ao colocar todos esses elementos em evidência com o uso de personagens (incluindo ele próprio) que trafegam para além do cárcere das páginas de um roteiro, Panahi tenta sublimar seu enfraquecimento emocional. Se abre e se expõe ao público em um movimento que, se não corajoso, é no mínimo audaz.

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