Ela Volta na Quinta, de André Novais

Ela Volta

:: Especial – Festival de Brasília ::

Não são poucos os escritores que já se debruçaram sobre a inevitabilidade do choque corpo a corpo entre memória e invenção. Também não são poucos os pesquisadores que começaram a discutir as chamadas “políticas do afeto” no cinema contemporâneo brasileiro, relacionando esse afeto à construção fictícia de uma memória compartilhada a partir de uma recente politização dos espaços privados. Ela Volta na Quinta põe em combustão a memória e sua invenção, o afeto e sua identidade. E usa de extratos reais da memória – relações que já existem dentro da própria família do diretor – para questionar e colocar essa dileção na berlinda, numa ação, por sua vez, política.

Explica-se. O filme de André Novais tem seus próprios pais, Dona Zezé e seu Norberto, como protagonistas de uma crise conjugal após 38 anos de casados. A crise, suas causas e consequências, são fictícias, roteirizadas. No entanto, o trato entre os membros da família, tiques adquiridos após muitos anos de convivência, permanecem. O que eles trocam em cena é resultado de uma intimidade intrínseca a todos. Novais vai usar dessa relação já firmada entre ele, seus pais, o irmão e a namorada para criar um roteiro diferente à vida de cada um. Faz isso com uma coragem que é compartilhada por todos os membros envolvidos no processo. Faz isso também do lugar de fala de um cineasta negro classe média morador de uma grande cidade (Belo Horizonte). E partindo de todos esses pontos, ao escrever uma história sobre o fim do amor, ele vai justamente fazer um dos filmes mais sinceramente afetuosos já vistos nesses últimos anos.

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Ventos de Agosto, de Gabriel Mascaro

Ventos de Agosto

:: Especial – Festival de Brasília ::
:: Especial – Mostra SP ::

Há sete anos, Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso se lançaram juntos no cinema com o documentário KFZ-1348. De lá pra cá, ambos tomaram rumos distintos que investigavam e experimentavam, cada um à sua maneira, as demarcações do cinema documental quando ele se apropria da ficção e de dispositivos para criar um debate já há muito tempo posto – não apenas pelo cinema – sobre até que ponto o real é percebido apenas após ser atravessado pela fantasia e, mais acintosamente, até quando o olhar de quem filma é senhor dos significados. Pacific (Pedroso) e Doméstica (Mascaro) fizeram isso muito bem. Mas os diferentes caminhos que eles tomaram se tornam muito claros quando da cena de abertura de seus novos longa-metragens, classificados ambos como ficção, mas ambos igualmente enraizados no documental.

Pedroso abre Brasil S/A com a opulenta imagem de um navio de carga rompendo o mar. Em Ventos de Agosto, Mascaro também utiliza uma embarcação para introduzir seu cenário. Só que no lugar da nau gigante e impessoal, o que vemos é um barquinho de pescador bem modesto carregando uma jovem que passa por um mangue para depois chegar ao mar aberto. Pedroso fala das macropolíticas, Mascaro tenta lidar com o microcosmo das relações. Navegam ambos pelo fetiche da imagem, mas há algo em Ventos de Agosto por demais imaterial, além do próprio vento, que faz desse filme uma experiência muita mais próxima de cadernos etnográficos a observar e registrar o ambiente em suas idiossincrasias que exatamente de uma proposta narrativa que ofereça alguma questão ou conflito direto.

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Branco Sai, Preto Fica, de Adirley Queirós

Branco Sai

:: Especial – Festival da Brasília ::
:: Especial – Mostra SP ::

–> ENTREVISTA DO BLOG COM ADIRLEY QUEIRÓS <–

Eventos de um mês qualquer em 2014 na Distopia Federativa do Brasil. Relatório 34560007 enviado ao futuro: Policial mata ambulante à queima-roupa, é filmado, e a população assiste à cena em seu celular enquanto estoura a pipoca no microondas. Famílias inteiras são despejadas de um edifício por um estado que protege o bem público apenas quando ele é privado. Na intenção de fazer comédia, emissora de TV veste mulheres negras com o manto escravocrata, chama menina branca racista de vítima e trata o único personagem sensato e plácido dessa narrativa, um jogador de futebol negro, como culpado.

Nenhuma dessas cenas está em Branco Sai, Preto Fica, novo filme de Adirley Queirós. Todas estão.

As camadas mais profundas de nosso inconsciente saliente nacional são aqui abertas com um corte transversal a revelar o que herdamos, e vamos deixar de herança, dessa terra em transe. O de cima sobe e o de baixo desce, diria o antropólogo Francisco de Assis França. Adirley entende bem o axioma e faz com ele um longa-metragem com uma consciência extraordinária, ora em grave, ora em agudo, desse presente mal-estar social. A partir de um evento real ocorrido nos anos 80, no baile de black music conhecido como Quarentão, então ponto cultural mais agitado da Ceilândia, Distrito Federal, o filme constrói uma fábula, ou se preferirem, uma ficção científica documental, que acompanha e cruza dois personagens diretamente afetados por uma batida policial dentro desse baile. Suas histórias apontam com precisão para uma reflexão sobre o direito à ocupação dos espaços nas cidades enquanto um direito humano negado diariamente em estádios de futebol, emissoras de TV, elevadores de serviço.

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Brasil S/A, de Marcelo Pedroso

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:: Especial – Festival de Brasília ::

Em 2013, o cineasta pernambucano Marcelo Pedroso apresentou o que era até aquele momento o seu trabalho politicamente mais contundente, o curta-metragem Em Trânsito. Nele, a imagem do então governador de Pernambuco, Eduardo Campos, era posta em cena como um agente de um projeto desenvolvimentista do país (e as acusações resvalavam também na presidenta Dilma Rousseff) onde os carros se tornavam protagonistas de uma sociedade à mercê da máquina. As Leis da Robótica de Isaac Assimov todas quebradas. Um ano depois, Pedroso conclui seu terceiro longa-metragem, uma ficção documental, ou documentário ficcional, lírica e trovadora que, de forma muito clara, expande os temas e as cenas de Em Trânsito. Brasil S/A, o filme sobre a história de um país que virou CNPJ, maximiza, aumenta o volume e sobe ainda mais a câmera para filmar em tons operísticos as sombras dessa zeitgeist nacional.

A sequência inicial, uma montagem épica sobre a chegada de um navio ao porto, de onde desembarcam tratores que são locomovidos por rodovias e nelas ficam escoltados pela polícia como se chefes de estado fossem, dá o tom epopeico e, claro, irônico e cínico, sendo esses últimos elementos uma constante na filmografia do diretor. Em helicópteros, gruas, trilhos e tripés, a câmera está sempre fixa e as sequências de imagens são, portanto, tão firmes e precisas quanto a própria ideia do desenvolvimento pujante da economia, essa entidade vigorosa e robusta. Sustentados por uma trilha sonora orquestrada, igualmente opulenta, esses movimentos de quadro vão buscar dar conta de vários elementos do passado, presente e futuro de um país escravocrata, sexista, classista, religioso, vertical e carrocrata. O personagem-eixo é um trabalhador do corte da cana que, em algum momento, se vê substituído por uma máquina e termina indo trabalhar como operador de um trator, o que na leitura burlesca do filme, é recodificado como um astronauta dentro de uma nave espacial.

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Sem Coração, de Nara Normande e Tião

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:: Especial – Festival de Brasília ::

Com vista pro oceano, há uma piscina seca e abandonada. Essa imagem está no centro emotivo de Sem Coração, um filme sobre aquele momento da primeira vazão de água, quando o desabitado começa a ser preenchido pela liquidez das descobertas afetivas de adultos saindo dos seus casulos de crianças. Numa praia de Alagoas, uma menina que não tem coração se apaixona por um menino que acaba de descobrir a primeira aceleração de seu músculo cardíaco. Ela é o mar volumoso, ele a piscina vazia. E num ambiente de violências de gênero institucionalizadas, em que a mulher precisa ceder e o homem precisa invadir, esse filme é um dos contos mais lindos já vistos sobre o instante em que ela inunda ele.

Os elementos de descoberta e estranhamento estão por toda parte. Léo é da cidade, do fone de ouvido, dos prédios desenhados no reflexo da janela de um carro com ar condicionado. Numa viagem de férias à casa do primo, no litoral de “interior” onde o playground de condomínio se torna praia deserta, ele passa por rituais de iniciação da adolescência. Um deles consiste em levar uma menina, que pelo marca-passo que carrega no peito é conhecida como Sem Coração, para dentro dessa piscina abandonada onde ela é, na consensualidade violenta do machismo, silenciosamente penetrada pelos meninos da região. No instante em que Léo é intimado a cumprir com a mesma prática, algo de novo é trocado entre eles.

O elemento neorrealista das crianças locais que se tornam bons atores no curta – primeiro trabalho como preparadora de elenco da atriz Maeve Jinkings – anda de mãos dadas com uma poética da imagem que encerra nela mesma vários símbolos, muito presente no primeiro curta de Tião, Muro. Juntos, essas referências criam um álbum de fotografias. A presença física do filme em película é essencial a essa construção da materialidade da memória.

Premiado na Quinzena de Realizadores em Cannes deste ano, Sem Coração compartilha essas reminiscências de um período quase sempre traumático na vida de ex-meninas e meninos, e o faz com leveza de uma narrativa preocupada em dar ao ambiente suas marcações psicológicas, na porosidade de uma imagem granulada tal qual o desbotamento de nossas lembranças. E como na cena de uma baleia encalhada na areia, é um filme também sobre resistir até o final ao que a natureza impõe – a imagem da cicatriz no peito dela -, ao que os arquétipos sociais determinam – a impossibilidade de um beijo na boca dele – e ao que o tempo nos força – o esquecimento.

Sem Pena, de Eugênio Puppo

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:: Especial – Festival de Brasília ::

É senso comum que o sistema carcerário do Brasil é espelho de um sem número de problemas sociais que cobrem desde a fundação da punição bíblica até as bases do capitalismo que louva o consumo sobrepujando o direito da propriedade diante dos direitos humanos. É também sabido que o tecido do judiciário brasileiro se transformou num nó de processos sinuosos em corredores burocráticos que transformam gente em estatística. Sem Pena é um filme que parte desse conhecimento mais ou menos compartilhado pela sociedade esclarecida e, a partir de uma tese sobre a falência moral desse sistema prisional, constrói uma pequena enciclopédia de depoimentos que ali estão para sublinhar e sustentar esse argumento. Trata-se, portanto, de um filme necessário e muito bem articulado em informar quem pouco conhece do tema, mas não exatamente de uma obra interessada em criar atritos éticos ou estéticos diante do cenário que filma.

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Loja de Répteis, de Pedro Severien

Loja de Repteis

:: Especial – Festival de Brasília ::

A literatura é pródiga nas metamorfoses que salientam a essência mais selvagem do ser humano. Já fomos baratas, lobos, macacos e, no Recife do cientista social Josué de Castro, já se foi (e ainda se é) caranguejo e gabiru. O cineasta Pedro Severien, herdeiro de um pulsar literário que nasceu mesmo antes do olhar cinematográfico, cria em seu novo filme uma identidade visual fantasmagórica à natureza dessa nossa constituição primitiva e totêmica. Como se o espectro desses animais assombrasse os ajustes sociais, muitas vezes, tão violentos quanto à luta pela caça do dia.

O fato desse curta, adaptado de um conto escrito pelo próprio Severien, escolher os répteis como os animais que representam aqui essa natureza selvagem do homem, diz bastante sobre que tipo de ser humano interessa ao debate do diretor. Bichos de epidermes espessas, visões mais apuradas no escuro e locomoção de rastejamento, os répteis costumam ser traduzidos nas chaves simbólicas da desfaçatez, da traição e dessa inércia própria de jacarés e cobras que simulam um estado de imobilidade (que nos seres humanos se transformam em amabilidade) antes de atacarem suas presas. Todos esses elementos terminam sendo usados para falar de um núcleo de pessoas que vive dentro dessa casa, por si só, delirante – e o incrível trabalho de fotografia e som no filme dá solidez a isso.

Na transformação de uma mulher, interpretada com toda a força cinematográfica que tem a atriz Maeve Jinkings, nesse réptil que aprisiona e é aprisionado, o filme cria uma parábola pós-moderna – com uma chuva fragmentada de símbolos, do azulejo colonial às câmeras de segurança – do viver enjaulado, sensação comum a todos nós que nascemos depois da criação da propriedade privada. Essa mutação está no corpo, e portanto também na lascívia, de uma mulher que com sua pele grossa domina e conquista o outro.

Sem se preocupar em ligar os pontos entre toda essa carga simbólica, Severien põe em xeque o limite sobre onde começam, terminam e se fundem os conflitos internos de seus personagens com os estímulos externos de uma cidade como o Recife que, assim como tantas outras, fincam sua identidade em seus fantasmas alegóricos. Qualquer relação com questões contemporâneas políticas da região não é mera coincidência.

Era uma Vez em Nova York, de James Gray

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Não deve ser fácil carregar o peso da liberdade nas costas. Pedra fundamental da ideia do ser americano, a palavra se irradia com frequência por discursos (políticos e/ou publicitários) que eximem os Estados Unidos de ser mais um império colonizador aos moldes romanos. Guerras, torturas e, ainda mais irônico, fortes sistemas de vigilância são erguidos em nome dessa liberdade. Tudo isso para dizer que já na primeira cena do novo trabalho de James Gray, claro está que a retórica da liberdade (e não ela em si), aqui representada na clássica imagem da estátua que leva seu nome, é fio condutor dessa história. E com seus tons de sombra e pouca luz, Gray faz um filme avassalador sobre a claustrofobia dessa herança discursiva americana.

Ainda sobre a tomada inicial, nosso campo de visão é o mesmo do homem que vemos de costas, personagem de Joaquin Phoenix, aqui no papel de Bruno Weiss, um agenciador de prostitutas numa Nova York do começo dos anos 20. Ele observa ao longe o símbolo maior dessa terra onde a poética do direito de ir e vir soa como música aos ouvidos de europeus massacrados já pela Primeira Guerra Mundial. Mais tarde, Bruno irá resgatar a presença dessa estátua – objeto inanimado congelado em pedra, tal como o conceito que ele mesmo representa – usando-a como armadura para a protagonista da história, Ewa, uma imigrante polonesa não menos que brilhantemente interpretada por Marion Cotillard. Continuar lendo