Os fins e os meios. Os fins pela soberania da arte, pelo triunfo da imagem, pelo êxito do cinema em nome do cinema. O discurso sobre a primazia dos fins nos diz que, bem filmadas, cenas de estupro podem ser de uma beleza extraordinária, que o fatiamento do corpo da mulher em enquadramentos fechados de suas pernas, seus peitos e sua bunda a transforma em um lindo objeto de contemplação, que a nudez feminina sem qualquer propósito narrativo existe porque fomos ensinadas e ensinados, desde os primeiros nus artísticos da História da Arte Ocidental, que o corpo da mulher não deve existir para ela mesma, mas sim para o olhar do homem branco heterossexual. E por que não, claro, reproduzir isso ao longo de toda a história do cinema?
Então, quando a gente fala “em nome do cinema”, de que cinema estamos falando? Quando falamos sobre contemplação, é a contemplação de quem que se perpetua? Para responder a essas questões, precisamos falar sobre os meios. Nos meios, existe todo um extracampo de imagens. Extracampo, para quem não é familiar ao glossário cinematográfico, é tudo aquilo que o filme provoca fora de quadro, as imagens que criamos para além do que vemos no enquadramento da câmera e que nos dão novas camadas de significações para as imagens a que, de fato, estamos assistindo. O extracampo é o que está ausente na cena, mas se encontra presente no filme. Numa leitura crítica e feminista do cinema, podemos dizer que nesse extracampo existem não apenas duas, ou três, mas várias imagens de mulheres e crianças sendo ora assediadas, ora psiquicamente torturadas, ora violentadas, ora tudo isso ao mesmo tempo “em nome da arte”. Elas foram os meios que justificaram os fins. Me questiono quantos homens brancos cisgêneros já sofreram humilhações dessa natureza para que o cinema, tal como nós o conhecemos e aprendemos a admirar, pudesse ser erguido.