Contra a velha cinefilia: uma perspectiva feminista de filiação ao cinema

Anos de Chumbo1

“O amor pelo cinema é consubstancial ao amor dirigido às atrizes”. Essa frase me persegue. Lembro exatamente da sensação que tive quando esbarrei com ela pela primeira vez, e de como ela disparou, em um só instante, aquele instante arrebatador, mais de 100 anos de história de cinema. Estava tudo ali, bem explicadinho e resumido, o porquê de o cinema ter sido erguido como um sólido edifício do pensamento do homem branco heterossexual. No único capítulo dedicado a falar das mulheres num livro-referência sobre a história da cinefilia, Antoine de Baecque escrevia, sem qualquer constrangimento, “que o amor pelo cinema é consubstancial ao amor dirigido às atrizes”. Nesse único capítulo dedicado a falar das mulheres num livro-referência sobre a história da cinefilia, Baecque deixava muito claro que, na história dessa mesma cinefilia, o tesão pelo cinema nascia tantas e tantas vezes, do tesão pelas mulheres em cena.

Há toda uma narrativa romântica por trás dessa frase. A mitologia é, ela mesma, uma imagem cinematográfica que vocês já devem ter visto não apenas em um, mas em alguns filmes. Meninos brancos que, como todos os meninos brancos, podiam andar sozinhos nas ruas, entravam em salas de cinema e ali ficavam, sessão após sessão, como um certo ato de insurgência juvenil, e aos poucos, na cumplicidade daquele gesto por si só desafiador de amar e temer o cinema acima de tudo e de todos como diria Serge Daney, criavam ali uma performance que compactuava de alguns rituais de passagens tais como, naturalmente, a iniciação sexual desses meninos que podiam se masturbar no escuro da sala diante dos pedaços de corpos de mulheres dispostas sobre o altar da tela.

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