Joaquim, de Marcelo Gomes

joaquuim

Surge o primeiro plano e nele o que vemos é a imagem da cabeça decapitada de um homem, exibida em praça pública. Imediatamente, somos levados a imaginar os percursos do corpo que teriam movido essa cabeça ao destino que lhe foi dado. E eis aí o centro de toda a questão problemática da relação do brasileiro (mas não só do brasileiro) com a história de seu país. Levados a acreditar sempre em um processo racional de “tomada de consciência” em nome da mobilização do mundo, somos induzidos à conclusão de que a cabeça, símbolo da razão, é aquilo que transforma, o que combate, o que enfrenta. Nessa supervalorização de uma consciência estritamente cartesiana, negligenciamos o corpo, seus gestos e afetos, na condução emocional, e não racional, das ações históricas. Joaquim, o mais novo filme de Marcelo Gomes, é um potente exercício de, como diria Walter Benjamin, “escovar a história em contrapelo” não exatamente porque se propõe a contar uma “outra” versão dos fatos, mas fundamentalmente porque faz isso a partir do corpo, e não da cabeça.

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Martírio, de Vincent Carelli

MARTIRIO

Há cinema que fala sobre resistência, há cinema que usa da resistência para falar sobre si mesmo e há aquele cinema cujo corpo inteiro – sua filmagem, montagem e exibição – é a resistência em si, um cinema que nasce com a tessitura do enfrentamento dentro e fora daquilo que ele enquadra. E este é o caso de Martírio, o novo filme do antropólogo, indigenista e documentarista Vincent Carelli, desta vez em colaboração direta com Ernesto de Carvalho e Tita, dois realizadores que dedicam suas vidas ao projeto fundado por Carelli em 1987, o Vídeo nas Aldeias. Juntas, essas e várias outras pessoas finalizaram esse que é o segundo filme de uma trilogia que, sem medo de ser leviana, vai se constituir no documento mais importante e completo já feito sobre a questão indígena no Brasil. Martírio, portanto, é um filme para sempre urgente, fundamental e medular no entendimento da nossa formação enquanto sociedade. Porque falar sobre como os índios são tratados no Brasil há mais de 500 anos é falar também sobre quem somos nós, os não-índios. E se ainda tivermos a cada vez mais rara capacidade de sentir empatia, a imagem que veremos de volta, no espelho involuntário em que tantas vezes se transforma a tela de cinema, o reflexo irá nos corroer.

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