Martírio, de Vincent Carelli

MARTIRIO

Há cinema que fala sobre resistência, há cinema que usa da resistência para falar sobre si mesmo e há aquele cinema cujo corpo inteiro – sua filmagem, montagem e exibição – é a resistência em si, um cinema que nasce com a tessitura do enfrentamento dentro e fora daquilo que ele enquadra. E este é o caso de Martírio, o novo filme do antropólogo, indigenista e documentarista Vincent Carelli, desta vez em colaboração direta com Ernesto de Carvalho e Tita, dois realizadores que dedicam suas vidas ao projeto fundado por Carelli em 1987, o Vídeo nas Aldeias. Juntas, essas e várias outras pessoas finalizaram esse que é o segundo filme de uma trilogia que, sem medo de ser leviana, vai se constituir no documento mais importante e completo já feito sobre a questão indígena no Brasil. Martírio, portanto, é um filme para sempre urgente, fundamental e medular no entendimento da nossa formação enquanto sociedade. Porque falar sobre como os índios são tratados no Brasil há mais de 500 anos é falar também sobre quem somos nós, os não-índios. E se ainda tivermos a cada vez mais rara capacidade de sentir empatia, a imagem que veremos de volta, no espelho involuntário em que tantas vezes se transforma a tela de cinema, o reflexo irá nos corroer.


Sobre esse reflexo e, portanto, sobre algo essencial a qualquer filme que é o momento em que ele é compartilhado publicamente, a sessão de sua estreia no Festival de Brasília precisa ser lembrada, ela mesma, como um acontecimento que pertence ao próprio documentário. O ano é 2016, nós, os não-índios, vivemos as primeiras semanas de um golpe político-jurídico-midiático no Brasil. Na cidade de Brasília, capital federal e lugar de onde saíram e saem as ordens de extermínio indígena, se chama para subir ao palco parte da equipe do filme. Como todas as sessões que precederam aquele momento, as pessoas em cena fazem sua manifestação pública contra o já citado golpe. O índio antropólogo Tonico Benites, figura essencial para realização desse documentário e tradutor de várias conversas, fala brevemente ao microfone. A projeção começa e já nos primeiros minutos surge a imagem da senadora Kátia Abreu como epítome de tudo aquilo que o país vem adotando como política desde que a coroa portuguesa fincou seus pálidos pés nas terras do “Novo Mundo”. O golpe, para os índios, acontece desde então. Todos os dias.

Dando sequência ao projeto que começou no momento da exibição de Corumbiara, em 2009 (o filme se encontra disponível, na íntegra, no YouTube) e que se encerrará com o já anunciado Adeus, capitão, Martírio é resultado de um longo trabalho de pesquisa de Vincent Carelli desde que, há mais de 30 anos, ele passou a ver e viver de perto a realidade de tribos indígenas sendo dizimadas no Brasil. No segundo longa desse projeto grandioso, Carelli concentra suas atenções na questão específica da etnia Guarani-Kaiowá, aquela mesma que, em 2012, fez com que milhares de brasileiros se solidarizassem com sua causa após uma carta pública endereçada ao Governo brasileiro, carta esta reproduzida aqui entre os parágrafos deste texto. A exemplo do filme anterior, Martírio tem uma estrutura aparentemente simples de narração em off do próprio Carelli e a montagem entre filmagens recentes e cenas de arquivo, imagens pessoais e pública cruzam a narrativa. É aparentemente simples porque flui muito bem nas quase três horas de projeção. Mas, na verdade, o trabalho de organizar o vasto material que se tem em mãos, cujo escopo remonta a períodos mais distantes em nossa História, é de fato um processo que exigiu da equipe desse filme um exercício bastante intricado de compreender esses momentos históricos numa cronologia e edição que, em nenhuma parte, perde o contato com o caráter afetivo e militante no qual nasce o filme. Sua verdade está nesse cuidado em ser sincero com quem o faz e para quem ele se dedica.

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Os momentos históricos que atravessam esse documentário dão conta dos vários processos de negação e extermínio da comunidade indígena brasileira, que remontam, em um primeiro momento, à Guerra do Paraguai e à subsequente concessão de terras que a recém-criada República concedeu ao comerciante Thomaz Larangeira, por serviços prestados na mesma Guerra do Paraguai. Surgia ali a Companhia Matte-Laranjeira e, com ela, a expulsão de milhares de índios Guarani-Kaiowá que habitavam a região do Mato Grosso do Sul. As plantações de erva-mate daquele momento são os infindáveis hectares tomados pela soja hoje. De lá para cá, o filme relembra episódios de massacre da vida e, fundamentalmente, da cultura indígena no Brasil. Houve o marechal Rondon, militar de origem indígena que, absorvido pelo positivismo da época, tentou catequisar os índios em sua missão sertanista; houve o desenvolvimentismo de Getúlio Vargas e o não-reconhecimento de terras indígenas asseguradas pela Constituição; houve o Golpe Militar e a imagem grotesca de índios militarizados batendo continência para Ernesto Geisel (e Martírio nos dá a cena devastadora de índios sendo usados pelo governo para desfilar com um homem em pau-de-arara); houve o tal processo de redemocratização e medidas nunca suficientemente efetivas para reconstituir a identidade e sobrevivência desses povos; e houve, finalmente, o mais recente projeto desenvolvimentista do país e sua sanha por um Brasil industrial e agropecuário de tratores, pistoleiros, deputados e senadores, ministras e ministros, presidente e presidenta que se empenharam, cada um a seu modo, em varrer do mapa a existência dos Guarani-Kaiowá.

Mas eles existem, e resistem. A terra, para essas pessoas, não é um espaço por onde se pode deslocar e construir memória onde e quando se quer. A terra, para essas pessoas, é a sua própria identidade. Retirados à força desses espaços que estão na constituição de sua própria existência, os índios sofrem uma fratura emocional que nós, não-índios, não conseguimos (ou não procuramos) entender. Muitas vezes empurrados pelo agronegócio para as beiras de estrada – e não é à toa que boa parte desse documentário acontece com a câmera dentro do carro, passando por caminhos cercados de indústrias, soja, pasto e concessionárias de carros –, a população indígena sobrevive em estado de vigília. Suas novas gerações já nascem sendo ensinadas e entender que podem morrer a qualquer momento.

E aí temos um dos grandes méritos cinematográficos desse empreendimento de Carelli e sua equipe. Se a relação dos índios com o espaço que os cerca é central na constituição de suas identidades e se a eles esse espaço passa a ser proibido, cria-se aí uma fratura com um dos gestos mais corriqueiros que o ser humano desenvolve com os lugares que ocupa: o olhar. Ocupar e resistir em um ambiente é também poder olhar para ele, contemplar sua paisagem. Aos índios, o gesto de olhar é ele mesmo desautorizado pelo Estado. Em vários momentos do documentário, quando é possível perceber como a própria equipe de filmagem se colocou em certo grau de risco pela simples ação de capturar as imagens ao redor, esse orgânico medo que a câmera adquire é o prolongamento de um medo muito maior, e mais devastador, que os índios brasileiros passaram a ter com o espaço.

Os atropelamentos, as balas disparadas por capangas de fazendeiros e, não se pode esquecer, os frequentes casos de suicídio testemunham o gradual aniquilamento dessas pessoas. E aí a equipe do Vídeo nas Aldeias, que se dedica desde os anos 1980 a levar conhecimento e equipamento em audiovisual para que os índios criem seus próprios registros e narrativas, é ela mesma uma personagem fundamental nessa história, particularmente quando, em uma das imagens mais fortes do filme, vemos finalmente as cenas capturadas por um índio que, “armado” com uma câmera digital de pequeno porte, consegue filmar pistoleiros atirando em direção à tenda onde vive uma família indígena. O cinema-resistência é, fundamentalmente, deixar que os espaços de registros sejam ocupados por aqueles que sempre foram ditos, e nunca puderam dizer a si mesmos. Mais uma vez, eis aqui o grifo no gesto absolutamente resistente de poder olhar.

Em outra sequência forte do filme, vemos imagens de homens e mulheres, todos brancos, numa reunião que eles chamam de “Leilão da Resistência”. A proposta é vender gado e, com o dinheiro arrecadado, se munir de um montante de dinheiro para combater as “invasões” dos índios em suas propriedades. Figuras políticas como a então ministra Kátia Abreu, o senador Waldemir Moka (PMDB-MS) e os deputados federais Luiz Henrique Mandeta (DEM-MS), Reinaldo Azambuja (PSDB-MS) e Fábio Trad (PMDB-MS) estão presentes. Seus discursos são acalorados. Falam fundamentalmente da “Propriedade”, de como ela é a fundação da família brasileira, de sua natureza “sagrada”. São cenas de horror, filmadas por uma câmera que certamente precisou se disfarçar de alguma forma para estar ali dentro, uma câmera com o instinto de sobrevivência daqueles que se dispõem a entrar em território inimigo.

Os discursos a que assistimos durante esse leilão são reais (é que a realidade é tão absurda que precisa sempre ser apontada como real) e carregam consigo um montante de ódio suficiente fazer mover um trator por cima de uma criança. As mulheres e homens brancos arrecadam R$ 1 milhão para agir contra os índios. A imagem do trator e da criança não existe no filme, mas podemos vê-la.

Posfácio: uma das sequências mais devastadoras de Martírio é um registro de arquivo (disponível na íntegra pelo YouTube), em que, no ano de 1987, o mesmo da criação do Vídeo nas Aldeias, vemos a liderança indígena Ailton Krenak, da etnia crenaque, fazendo um discurso na tribuna do Congresso Nacional, enquanto pinta seu rosto com a tinta preta do jenipapo. Reproduzo aqui, na íntegra, para efeito de registro textual, as palavras de Krenak naquele momento:

“Eu espero não agredir com minha manifestação o protocolo desta casa, mas eu acredito que os senhores não poderão ficar omissos, os senhores não terão como ficar alheios à mais essa agressão movida pelo poder econômico, pela ganância e pela ignorância do que significa ser um povo indígena. O povo indígena tem um jeito de pensar, tem um jeito de viver, tem condições fundamentais para sua existência e para manifestação da sua tradição, da sua vida, da sua existência, de sua cultura, que não coloca em risco e nunca colocaram a existência sequer dos animais que vivem ao redor das áreas indígenas, quanto mais de outros seres humanos. Eu creio que nenhum dos senhores poderia apontar atos, atitudes da gente indígena do Brasil que colocou em risco seja a vida, seja o patrimônio, de qualquer pessoa, de qualquer grupo humano nesse país. E hoje nós somos o alvo de uma agressão que pretende atingir, na essência, a nossa fé, a nossa confiança de que ainda existe dignidade, de que ainda é possível construir uma sociedade que sabe respeitar os mais fracos, que sabe respeitar aqueles que não têm o dinheiro pra manter uma campanha incessante de difamação, que saiba respeitar um povo que sempre viveu à revelia de todas as riquezas. Um povo que habita casas cobertas de palha e dorme em esteiras no chão não deve ser identificado de jeito nenhum como um povo que é o inimigo dos interesses do Brasil, inimigo dos interesses da nação e que coloca em risco qualquer desenvolvimento. O povo indígena tem regado com sangue cada hectare dos oito milhões de quilômetros quadrados do Brasil. Os senhores são testemunhas disso.”

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