Surge o primeiro plano e nele o que vemos é a imagem da cabeça decapitada de um homem, exibida em praça pública. Imediatamente, somos levados a imaginar os percursos do corpo que teriam movido essa cabeça ao destino que lhe foi dado. E eis aí o centro de toda a questão problemática da relação do brasileiro (mas não só do brasileiro) com a história de seu país. Levados a acreditar sempre em um processo racional de “tomada de consciência” em nome da mobilização do mundo, somos induzidos à conclusão de que a cabeça, símbolo da razão, é aquilo que transforma, o que combate, o que enfrenta. Nessa supervalorização de uma consciência estritamente cartesiana, negligenciamos o corpo, seus gestos e afetos, na condução emocional, e não racional, das ações históricas. Joaquim, o mais novo filme de Marcelo Gomes, é um potente exercício de, como diria Walter Benjamin, “escovar a história em contrapelo” não exatamente porque se propõe a contar uma “outra” versão dos fatos, mas fundamentalmente porque faz isso a partir do corpo, e não da cabeça.
Antes de recuperar nossas cabeças, é preciso, portanto, resgatar nossos corpos. A câmera de Marcelo Gomes e sua vocação para dirigir atores percebem e sentem essa urgência. Da parte dos atores, fica evidente que o manejo de seus corpos é essencial à história que o filme se propõe a contar. Júlio Machado (Joaquim), Isabél Zuaa (Zua), Rômulo Braga (Januário) e Welket Bungué (João) são, nesse sentido, igualmente autores do filme. Da parte da câmera, esta caminha lado a lado não apenas do corpo do homem que perdeu a cabeça, mas próxima de todos os corpos que o afetaram e foram afetados por ele. São corpos sujos e suados, apaixonados e raivosos, cansados e excitados, corpos que, como a própria câmera, tremem. Mas nunca são corpos de heróis, fortalecidos por redomas de moralidade intransponível.
O protagonista em questão é uma figura popular na História do Brasil que foi, não à toa, encarcerado em uma dessas redomas. Joaquim José da Silva Xavier, mais conhecido como Tiradentes, é um desses personagens paradigmáticos, que simbolizam uma mudança de curso, ainda que as energias por trás dessas mudanças nunca sejam elaboradas. É justamente nessa lacuna de aproximação com o homem por trás da lenda, do Joaquim que se sobrepõe ao Tiradentes, que o diretor faz seu percurso e nos revela, em sua licença poética, um homem cujo heroísmo, ao menos aqui, parece ter sido moldado por uma combinação de frustrações pessoais aliadas ao manuseio ideológico desse sujeito desencantado em um nome de um projeto politico pensado e organizado por uma elite que, intelectual ou não, sempre permaneceria elite. O filme, muito habilmente, coloca em xeque o próprio mito do herói que é dono de suas próprias ações.
Mas Gomes não quer explicar esse personagem, encerrá-lo em uma cadeia lógica de causa e efeitos, localizar sua latitude e longitude na História, mas fazê-lo ser sentido – e aí talvez, compreendido, ainda que não seja essa a intenção – a partir das respostas que seu corpo tem com o mundo que o cerca. Para tanto, recorta o período do tempo que precede ao momento da chamada “tomada de consciência” do personagem, quando sua cabeça será, inevitavelmente, cortada de seu corpo. O que se vê é, portanto, um Joaquim que, frustrado em não conseguir uma promoção de patente militar e preso a uma espécie de trabalho de sentinela (vigiando quem passa com ouro pela estrada sem pagar tributos à coroa), aceita a proposta de se largar com um grupo de homens rumo a um desconhecido sertão em busca de ouro, o mesmo que será quase todo desfrutado pelo império a quem ele serve. Na reelaboração fabulesca de Marcelo Gomes – ainda que profundamente fincada nos traumas invisibilizados de nossa história – duas forças o motivam a fazer essa viagem: a de finalmente conseguir um posto superior ao de alferes e o de reencontrar e “libertar” como bom homem branco que é, a escrava conhecida como “Preta”, por quem ele se apaixona e quem, logo após o primeiro dos três atos do filme, foge pelo mesmo sertão após ter assassinado mais um de seus estupradores.
O corpo dessa que é a mulher central do filme, a quem o racismo colonial apelidou (e ainda apelida) de “Preta”, não é o primeiro motor da condução emocional da narrativa, mas certamente é um dos mais fortes. Sua relação com Joaquim, sua fuga e, por fim, sua reaparição na figura de líder de um quilombo escondido no meio da mata, sinaliza para o processo de construção da memória do país. Ela não ama Joaquim, faz concessões a ele, ela não foge com medo de ser morta, ela foge na vontade de se ver livre, ela não é “Preta”, porque Preta, como se frisa no filme, é um cor, e não um nome. Ela é Zua e Zua é toda a negação do mito da convivência harmônica e amistosa entre brancos, negros e índios no Brasil, ao mesmo tempo em que é a demarcação do ponto energético de onde não se pode retornar.
Mas se a força de Zua está quase sempre no extracampo da imagem, o enquadramento que a câmera dá ao grupo aglutinado em torno de Joaquim na peregrinação em busca do ouro, bem como a própria caminhada que esses homens fazem e as paisagens que os cercam, dizem respeito à construção não exatamente de uma consciência, mas de uma presença que atravessa o tecido dessa mesma memória da qual Zua faz parte. É por esse sentimento de presença que a história e a História serão contadas. Presença de que exatamente? De uma vasta paisagem que, em lugar de libertar e abrir esses personagens para o mundo, os oprime porque não lhe dá o ouro que eles buscam; da gênese de um conservadorismo brasileiro moldado na base do “farinha pouca, meu pirão primeiro” latente tanto em Joaquim quanto no seu braço direito, Januário; das forças sufocadas, mas sempre potentes, que se manifestam no canto tribal de um homem negro sobreposto ao canto de reza de um homem índio, nessa que é uma cena-síntese de vários apagamentos promovidos pelo Estado (monárquico ou republicano). É também a presença do homem branco português que, apesar de tudo temer, ainda representa a instância de poder que oprime esses homens. Qualquer relação com o Brasil de 2017 não é mera coincidência.
Aliás, Joaquim é um filme do seu tempo e isso é uma virtude, não se afastar da História para falar da História é uma qualidade. Mas se todos os seus acertos nascem em função disso, o mesmo acontece com o seus erros. Se durante quase todo o roteiro, há uma potencialização das imagens que revelam tudo ao dizer nada (mais uma vez, a cena do canto africano sobreposta ao canto de uma tribo indígena), há também no arco conclusivo do filme, curiosamente aquele que vai dar conta do começo de uma doutrinação intelectual de Joaquim, falas que se tornam excessivas justamente porque demonstram uma certa preocupação em explicar algumas situações, como que deslocando o filme para fora dele mesmo e o alojando discursivamente nesse momento histórico tão… temerário em nossa história. De qualquer forma, o que se registra nesse filme pende muito mais para uma tentativa de sensibilização de um espírito do tempo – e esse tempo é o presente tentando criar outras relações com o passado – do que de uma explanação sobre ele.
Passamos por um processo de revisão daquilo que nos foi contado e de refabulação dos pontos cegos de uma narrativa endossada diariamente por uma potente máquina dramatúrgica a serviço de um discurso oficial. Se Tiradentes é um sujeito conhecido dos livros de História do Brasil, herói nacional com prestígio de feriado, sua fama, no entanto, costuma se encerrar em poucos parágrafos de uma narrativa que o eleva, com as pompas e trombetas dos documentos registrados em cartório, ao posto de um funcionário da coroa portuguesa que, destemidamente, se insurgiu contra a monarquia e morreu em nome da independência do Brasil. Eis o começo, meio e fim da história tal como a aprendemos, homem cristalizado como mais um dos nossos mitos fundadores. No cinema nacional, chegou a ser descrito quase que parnasianamente em Os inconfidentes (1972), de Joaquim Pedro de Andrade, filme localizado dentro de um período que favoreceu esse processo de cristalização domesticada de alguns personagens históricos.
Sua reinscrição no cinema nacional contemporâneo demonstra que parece agora haver um sentimento, mais do que um entendimento, de se viver um momento de nova escritura da História, de combate aos longos anos em que a obrigatória disciplina de Moral e Cívica doutrinou gerações de pessoas a acreditar em discursos de bandeiras flamejantes. Se sobre nós, brasileiros, sempre recai uma culpa de negligenciar e sublimar importantes (e os oficialmente desimportantes) processos históricos do país, é preciso perceber que a própria ideia de que somos um “país sem memória” maliciosamente se torna, por si só, um dos vários mitos fundadores que nos abraça e contra o qual, aparentemente, não se pode fazer muita coisa. Joaquim, de Marcelo Gomes, é sintomático de um momento epifânico coletivo quando se percebe que nada, em nossa história, foi tão simples e confortável assim e que só se pode combater essas narrativas totalizantes quando a cabeça existe não em função do corpo, mas a partir dele.