La La Land, de Damien Chazelle

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Que não se culpem as coreografias, os cenários wallpaper, os planos sequências cheios de malabarismos, o horizonte cor de rosa que nasce no fundo de cena. O problema de La La Land não é o escapismo em si, como muito se tem argumentado. Mesmo porque o escapismo, em última instância, é a máquina que faz girar até mesmo o mais politizado cinema. Afinal de contas, estamos ou não estamos sempre diante do duplo da imagem? Que não se culpe também o timing suspeito de se fazer um musical em tempos de crise. Salvo algumas fictícias lacunas de paz no mundo, os tempos são sempre de crise, e os grandes musicais hollywoodianos sempre souberam fazer jus ao devaneio onírico que, convenhamos, é tantas vezes necessário para que não sejamos absorvidos pela espiral de pequenas grandes catástrofes ao redor. O maior problema de La La Land – sim, porque ele existe e não deve ser minimizado – está em advogar por uma temerosa ideia de “modelo ideal” das coisas, de um lugar original, fundador, onde e quando tudo era melhor. E isso é muito mais traiçoeiro que ser apenas um filme “escapista”.

A questão, pois, não está na promoção dessa terra dos sonhos, a La La Land, onde tudo é possível desde que você se esforce o bastante – “não fale em crise, trabalhe”. O fator preponderante no novo filme do jovem diretor Damien Chazelle não é o onírico, mas o idílico. Ou seja, não se busca apenas um sonho, se busca um sonho padronizado e enquadrado segundo as premissas de quem tem legitimidade para nos dizer o que é o bom gosto. O bom gosto do jazz “puro”, dos “verdadeiros” musicais, de uma Hollywood que cultivava o star system das grandes divas e dos grandes heróis, todos intocáveis, brancos e muito bem encaixados no modelo papai e mamãe. La La Land tenta invocar um certo espírito renascentista, no sentido de que busca e conclama esse passado idealizado, tal como o Renascimento foi buscar na antiga arte greco-romana isso que muitos chamavam de essência da arte. E existem inúmeras questões bastante problemáticas que transbordam dessa ideia.

A primeira delas diz respeito ao próprio conceito do que é o modelo “ideal” e quem o cria. O filme nos traz como protagonista esse jovem pianista chamado Sebastian, interpretado por Ryan Gosling, cujo sonho é abrir um bar onde ele possa tocar o “verdadeiro” jazz. Sebastian é um moço branco desempregado e, por isso, por mais quebrado que um moço branco possa ser em Hollywood, ele ainda tem dinheiro para pagar contas de aluguel e frequentar festas com drinques coloridos e piscinas no jardim da casa.  Quando começa a se interessar pela mocinha do filme, Mia (Emma Stone), Sebastian tenta convencê-la de que não se dá mais espaço para o “puro” jazz como antigamente. E aí vem uma cena insólita onde ele explica para a mulher branca e musicalmente ignorante (para os critérios dele), o que é que cada músico negro está fazendo no palco, o quão importante é cada nota de cada um daqueles instrumentos. A música tocada pelos homens negros dita – com uma gentil arrogância – pelo moço branco e loiro que detém a voz do filme. Ou como sabiamente já escreveria Toni Morrison em seu romance, Amada: “as definições pertencem aos definidores – não aos definidos”.

Mas para além disso, o que vem a ser exatamente o jazz puro que Sebastian tanto que salvar? Sim, porque no fim das contas, é isso que se espera do homem branco: que ele salve tudo (e particularmente que ele salve o homem negro). Não sou conhecedora de jazz, e possivelmente para esta crítica que concerne exclusivamente à forma fílmica de narração, não cabe tecer mais considerações sobre isso. Mas Sebastian faz constantes alusões a nomes como Thelonious Monk, Charlie Parker e Hoagy Carmichael, de quem ele conseguiu o banquinho – objeto fetiche – onde esse pianista sentava em suas apresentações. São todos nomes muito importantes para a história do jazz, mas de nenhuma forma são pessoas que encerram nelas os limites de uma música cujo prédio fundador foi erguido na base de muito improviso e contaminações culturais de três tradições musicais muito distintas: a espanhola, a francesa e a anglo-saxã que, juntas, produziram um som tipicamente afro-americano. Invocar um lugar intocável de “pureza” para o jazz soa, ao menos na voz de Sebastian, no mínimo pedante.

Mas se de um lado temos o protagonista do filme se debatendo com o fato de que sua carreira só começa a decolar quando ele entra para uma banda de fusion jazz, ou seja, contaminada pelos instrumentos eletrônicos, do outro vemos a mocinha do filme sendo exatamente isso, a mocinha do filme, que dorme em um quarto decorado com um imenso papel de parede exibindo um superclose de Ingrid Bergman, imagem que acalenta os sonhos da jovem em se tornar uma atriz famosa. Ironia obviamente não explorada pelo filme se dá no fato de que Ingrid Bergman, para além daquela imagem congelada de Casablanca, foi uma das atrizes que mais sofreu com a máquina de sonhos imposta por Hollywood às suas grandes estrelas, tendo sido banida dos Estados Unidos depois que se descobriu seu caso extraconjugal com o diretor italiano Roberto Rossellini. Mia possivelmente não conhece essa história e preserva, assim como todo o filme, a ideia de que os “bons tempos” eram aqueles de uma Hollywood tão bem emoldurada nos chamados glamour shots que borravam os rostos das mulheres e a transformavam em objetos inanimados de contemplação.

Mas no pacote nostálgico do filme não se encontra somente uma idealização ingênua de um certo momento em que o jazz ou o cinema eram melhores ou, pelo menos, mais autênticos de acordo com a já citada perspectiva renascentista. Na esteira do que se toma por modelo ideal está também um cinema em que as mulheres investem tudo em relações com homens que tão bem personificam o personagem do “bad boy” que, no fundo (ou assim essas personagens esperam), será sempre um rapaz sentimental.

A cena tributo a Juventude Transviada diz quase tudo sobre a construção do personagem de Sebastian, ou de como James Dean é tudo que o personagem de Ryan Gosling gostaria de ser nesse filme. “Quase” porque nada na relação do casal central do filme é mais significativo do que o momento em que os dois, de fato, se esbarram pela primeira vez. No primeiro encontro corporal entre Sebastian e Mia, ele chega a empurrá-la com seu corpo em um gesto nada menos que grosseiro. A cena diz muito sobre como na base de toda relação abusiva está a crença de que alguém pode mudar o temperamento do outro e de como essa mesma Hollywood que tanto aprendemos a projetar como “ideal” reproduziu um sem fim de vezes a dinâmica da mulher que se apaixona pela ideia de que pode amolecer o coração do sujeito intempestivo. Eis aí uma faísca romântica presente em boa parte dos filmes clássicos que colecionamos em nossa cinefilia. Não menos frequente é a situação em que o rapaz em questão pega a mocinha pelo braço – a sequência mais paternalista do filme – e a leva para o teste de elenco que, finalmente, transformará o sonho dela em realidade.

Do ponto de vista estritamente estético, o filme tenta emular uma certa euforia que o cinema norte-americano viveu em seus primeiros anos de technicolor. Faz uso de uma direção de arte e um figurino muito bem projetados para reproduzir toda a excitação que as cores quentes jogam na tela. As músicas cantadas em cena, se não são exatamente as mais criativas, também não fazem feio em contar as histórias que o filme quer contar. Talvez isso, adicionado ao timing para o humor que, de fato, tem Emma Stone, fossem suficientes para fazer de La La Land um deleite exclusivamente escapista e inocente que tanto gostaríamos de ver.

Mas há algo no plano sequência inicial desse filme que já denuncia o lugar normativo de onde ele fala: em um viaduto de Los Angeles, onde os carros não conseguem sair do lugar, a câmera sobe e desce acompanhando uma coreografia muito bem ensaiada de diversos “tipos” urbanos. A sequência termina na apoteose de três dançarinos em rápidos números solos: um homem negro, uma mulher latina e outra japonesa surgem em cena sendo exatamente isso que lhes cabem no roteiro: souvenires de viagem. Eis mais uma vez o perigo de um filme que glorifica um modelo “original” do que venha a ser o bom gosto – o bom jazz ou o bom musical – quando esse juízo de valor implica transformar diversidade em exotismo, tal como nos bons e velhos filmes da moça latina com suas bananas e cajus pendurados na cabeça. As distâncias entre a fetichização dessa nostalgia e aquela outra que suspira por slogans como “make America great again” ou, ainda mais familiar, “bons eram os tempos do regime militar” são menores do que se possa imaginar.

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