Terrorismo narrativo para bagunçar a matemática da mito máquina*

*Esse texto foi publicado originalmente no catálogo da 2ª edição da Mostra de Cinema Árabe Feminino. Originalmente, ele foi editado em duas colunas paralelas, numa tentativa de simular a estrutura díptica do filme In Vitro. Para lê-lo em sua configuração original, acessem o catálogo aqui.

Possessão é impossibilidade (e, portanto, sempre-já um mito), por Kênia Freitas

É possível possuir a lua? Uma árvore? Uma paisagem? (De volta) Um território expropriado? Um sonho? Um trauma? Memórias coletivas e individuais de uma nação? Em A Space Exodus (Um Êxodo Espacial, Larissa Sansour, 2009), uma bandeira palestina é cravada na lua. Mas quem possui quem quando o filme reencena farsescamente o gesto colonizador cosmológico de Neil Armstrong?
Em Nation Estate (Patrimônio nacional, Larissa Sansour, 2012), é um edifício corporativo que possui toda uma nação ou toda uma nação que possui um edifício corporativo? A reencenação nesse caso se dá na apresentação do território (já despossuído) da Palestina como artifício do biocontrole da “alta vida”. A comida sintética e a paisagem falsa como marcadores da mitologia fundante da geopolítica contemporânea: a soberania do estado nação.
Projetos de possessão que estão de partida fracassados (na ficção fílmica e no mundo). Aos desejos de possuir, as imagens e sons que Sansour cria devolvem deriva absoluta, sem território e sem referências (a palestinauta solta no espaço sideral) e um não-lugar (o elevador, o apartamento, a entrada do edifício-nação esvaziados de qualquer pertença).
“Jerusalém, nós temos um problema”, sem resposta possível.
E uma árvore cresce na terra, uma criança cresce na barriga. Apesar de, ou por causa da, despossessão.

Não negociar o páthos, por Carol Almeida

A Space Odissey. A Space Exodus. A diferença entre a Odisseia e o Êxodo em suas tramas originais nas mitologias greco-romana e judaico-cristã é que a primeira narra o movimento de retorno do herói à sua terra, enquanto o segundo narra o heroísmo de um retorno fictício, pois que a terra para onde se retorna é uma promessa, e não um lugar de onde se partiu. O páthos dos filmes de Larissa Sansour está concentrado na intensidade de uma irmã pária dessas duas narrativas: o Exílio.
Quando o exílio é “congênito”, qual o movimento a ser feito dentro dos filmes? O de retorno a uma terra de onde se partiu? O de saída a uma terra prometida? Nenhum deles. O exílio é o eterno não-lugar, e o não-lugar, para o povo palestino, é uma condição imposta que termina entrando nas veias, produzindo um corpo suspenso no espaço e no tempo: não se consegue voltar, e não se consegue sair.
Se nos dois primeiros filmes da artista o páthos do exílio é manifesto por duas mulheres que se inserem em um espaço amorfo (a Lua de Space Exodus, o edifício corporativo de Nation Estate), nos dois filmes seguintes (In the Future They Ate from the Finest Porcelain e In Vitro) essas mulheres se colocam em um território povoado por uma memória simbólica, carregada de figuras humanas e não-humanas que condensam uma contra-narrativa palestina.
De todas essas figuras, uma chama atenção em ambos os filmes: o círculo escuro. Trata-se de um globo ou de um buraco? Espaço já preenchido ou ainda passível de preenchimento? Seria a própria figuração da Lua, o satélite que se projeta como ilha utópica? Há aí um outro monólito que inaugura uma nova sinfonia de Assim falou Zaratustra.

Arqueologia é ficção especulativa (escava-se para e contra a história) – Kênia

Se possuir é sempre-já criar mitos, a escavação arqueológica – que sonha possuir os restos materiais do passado – é um dos braços (entre os incontáveis) da ficção especulativa.
Em In the Future They Ate from the Finest Porcelain (No Futuro, eles comiam da melhor porcelana, Larissa Sansour/ Søren Lind, 2016), Sansour enterra-se e escava-se para criar sua especulação própria (e coletiva). O seu projeto artístico é arquivo e ficção. Afundar-se dentro da terra (que não se possui) e da memória (que não se possui). E ressurgir não como fato, mas como ficção. Evidenciando no gesto a fabricação de todo e qualquer
projeto arqueológico.
Como criar cápsulas do tempo fabulares para um futuro improvável? Anda-se junto com Saidiya Hartman e as suas duas Vênus, concordando que o “arquivo é inseparável do jogo de poder” e, portanto, sempre limitado para contar a história dos vencidos. Falsificar a datação por carbono e confundir as temporalidades é então fazer História (e o cinema) para e contra a arqueologia (e a Iconografia).
Porque – com ou sem fabricação – as porcelanas enterradas não cessam jamais de chover.
(E a memória da irmã assassinada escapa a cada vez).

Hackear a arqueologia – Carol

In Vitro: nome do quarto curta-metragem de Larissa Sansour, ao lado de Søren Lind, e termo científico usado para designar os processos biológicos que têm lugar fora dos sistemas vivos, processos que acontecem dentro de um ambiente controlado, fechado e escuro de um laboratório.
Seus filmes são todos procedimentos “in vitro” no sentido que eles acontecem a partir de uma manipulação de imagens feitas em ambientes meticulosamente pensados para simular situações artificiais: a conquista colonial da Lua, o arranha-céu corporativo segmentando em pavimentos o território e as memórias palestinas, o deserto do real emoldurado por um horizonte em eterno estado de um dia que não amanhece e uma noite que não anoitece, o subterrâneo da memória em um díptico de imagens e mulheres que ora se opõem, ora se fundem.
Simular é uma ação de guerrilha para Larissa, porque acontece no gesto de captura da arma de seu algoz: o Estado de Israel. O mesmo Estado-ficção do general Moshe Dayan, arqueólogo que em 1967 levou uma equipe de colegas para as terras ocupadas/invadidas por Israel para escavar “provas” da presença judaica naquele território desde os tempos bíblicos.
A prática da arqueologia, denunciam alguns pesquisadores, que manipula a terra, as paisagens e o Carbono-14 de alguns objetos “achados” para legitimar uma ocupação/invasão de território é desde então uma crise no olho do rigor científico. No entanto, “meus ossos trairão a ficção”, diz a voz da terrorista narrativa em In the Future They Ate from the Finest Porcelain. Que se plantem então, no profundo do solo, as porcelanas com as mesmas estampas dos keffiyehs, para que se diga no futuro que esse povo palestino sempre esteve ali. “Epistemologia para moldar uma imaginação nacional”.

“O futuro é um terreno cronopolítico” (“…um terreno tão hostil e traiçoeiro quanto o passado”) – Kênia

Ao descrever arqueólogos do futuro lidando com “arquivos frágeis” (que são o nosso presente), Kodwo Eshun nos conforta afirmando que nesse futuro (um portanto em que de alguma forma sobrevivemos) já não há dúvida sobre o seu caráter cronopolítico. Eshun nos conta que foi a responsabilidade dos seres esquecidos “em relação ao que ainda-não-é, ao que virá a ser” que possibilitou a criação desse próprio futuro improvável, com os resquícios dos nossos “arquivos frágeis”.
A chuva de porcelanas, que começa como folhas ainda no outono, transforma-se em monção, em uma praga bíblica. Primeiro, esse sonho é uma imagem descrita pela narração-diálogo do filme. Depois, o sonho retorna como imagem-fílmica.
Não há no filme futuro ou passado (menos ainda presente), mas apenas a temporalidade cíclica e repetitiva do sonho (palavra e imagem e palavra). Temporalidade atravessada pelo corte do trauma – individual e coletivo – da morte da irmã (que é familiar, e política, e familiar).
O projeto de vida (e arte) de Sansour se faz na impossibilidade de se comunicar com o passado e o futuro (eles não respondem ainda). Sem outra alternativa do que seguir enterrando e forjando vida e memória como ficção – esperando alguém (no futuro? no passado?) escavar esses “arquivos frágeis” e responder.

Forjar o tempo e a paisagem – Carol

Para a cosmologia andina, o Passado sempre se coloca diante das pessoas, pois que quando se ergue os olhos para a frente, o que se vê é o acúmulo de experiências já vividas, não apenas pelo corpo de quem olha, mas pelos corpos de todos que já acumularam vivências anteriores naquele território. O Futuro, por sua vez, está espacialmente localizado atrás de nós, uma vez que ele ainda não chegou, não nos alcançou.
No cinema de Larissa Sansour, a estratégia é jogar o Passado, seja por colagens fotográficas, imagens de arquivo ou sons que ecoam de algum lugar da memória, sobre imagens que se projetam sempre em um Futuro estéril, vazio, localizado dentro de um tempo-hiato que só adquire status de tempo porque ainda revela em suas brechas a textura das ruínas.
Estamos em um Futuro assombrado, que se coloca atrás dos corpos como fantasmas que sopram apocalipses nos ouvidos dos vivos. A ideia de que o Futuro está chegando é precisamente o problema. São filmes que suspendem a gravidade do tempo linear: flutuamos como astronautas por esse espaço oco, vivendo no aguardo dos mitos e fábulas que o irão fundar. E se aquilo que se coloca diante dos olhos é o Passado enquanto uma memória coletiva acumulada, estamos também dentro de uma “paisagem vertical”, nos termos de Édouard Glissant. Portanto, paisagem como um modo de olhar impregnado não apenas do presente, mas igualmente de um “passado mítico”. “Uma paisagem de pé, onde o desvanecimento até o infinito é imediatamente submetido ao comprimento de um pé de homem, única largura cultivável de uma vez, e, consequentemente, onde a perspectiva não encontra a menor razão de correr para longe”.
Pelo “comprimento do pé de um homem” se entende uma experiência de vida (a sua e dos seus) que seu corpo e o corpo dos seus ancestrais carregam. Portanto, a paisagem que se observa está sempre tomada pela memória individual e por um inconsciente coletivo. O que se projeta diante do corpo sempre será atravessado pela memória atualizada no Presente.
“Em algum momento, o Presente impõe sua linguagem e projeta o significado desse mesmo momento sobre o Passado. O Passado nunca foi, ele apenas é”, nos diz In Vitro.

“Memórias não distinguem entre fato e ficção” (uma conversa com quem?) – Kênia

A destruição de um território (que não se possui) significa necessariamente a destruição de sua memória? É possível enterrar e escavar memórias que não são de ninguém (despossuídas)?
Em In Vitro (Larissa Sansour/Søren Lind, 2019), a tela se parte em duas: são continuidade e ruptura de perspectivas múltiplas (e não apenas binárias). Somam-se inúmeros ângulos do mesmo território – e ainda assim nada pode desfazer a destruição inicial.
A impossibilidade de possuir é tramada então como auto-ficção mitológica e coletiva. Na qual é possível desenterrar também novos seres (ou novas versões de velhos seres) feitos em laboratório da dor e restos que sobraram – de nossos “arquivos frágeis”. Mais do que não se possuir, a especulação de Sansour e Lind, aqui, pergunta-se sobre o nem ao menos ser: sem memórias, sem território, sem originalidade. Uma cópia: uma nova (mas não a última) versão de si.
Ainda que passado e futuro não respondam, o diálogo é o que move as incertezas. Mas, uma conversa entre quem? Uma nova e uma velha versão de si? Ainda que “memórias não distinguem entre fato e ficção”, fala-se, explica-se (ou confunde-se?). Porque o que ronda a despossessão de memória e território, para além da destruição, é o crescente vazio.
Vazio que vagueia entre o território enterrado e o suspenso, o trauma coletivo e o familiar, a ruptura e a continuidade.
Contra ele, a ficção – imagens e sons inventados, enterrados, escavados e reinventados. Ficção que é a impossibilidade de (re)criação (de repossessão) de um território, de um futuro, de uma memória. E a sua única possibilidade.

Polinizar a imaginação – Carol

Seus únicos filmes com diálogos, In the Future They Ate from the Finest Porcelain e In Vitro, a conversa se dá sempre entre duas mulheres. No primeiro, o tom é de uma sessão terapêutica, uma voz que interroga e a outra que responde; no segundo, as possibilidades se expandem: Mãe e filha? Mãe e projeção de filha? Versão do Passado e versão do Futuro da mesma mulher? Real e virtual? Negativo e Positivo?
A resposta interessa bem menos do que as perguntas. O fundamental é que Belém, cidade para onde convergem tantos mitos, já se torna aqui o espaço inundado por um líquido espesso da morte, e como o filme é em preto-e-branco, não se sabe se esse líquido é sangue ou petróleo (de novo ele, Stanley Kubrick, como uma nota visual dessa filmografia). Talvez tenham se tornado a mesma coisa.
A lembrar que “o rigor científico é irrelevante, mesmo porque nações inteiras são construídas por contos de fadas, os fatos por si só são estéreis”. Portanto, sangue ou petróleo, a precisão da natureza do líquido depende exclusivamente da capacidade de imaginação sobre ele.
É preciso então recuperar os casulos e as colmeias antes que as bombas cheguem, é preciso reinstalar o gesto de cravar uma bandeira da Lua, é preciso confundir o status do tempo, é preciso fabular, criar novos mitos, plantar novas oliveiras, mas entender também que tudo isso só pode acontecer na imprecisão de um Presente que está condenado a ser um tempo-espaço de passagem entre a memória e os usos políticos dela.

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