:: Especial – Festival de Brasília ::
Em 2013, o cineasta pernambucano Marcelo Pedroso apresentou o que era até aquele momento o seu trabalho politicamente mais contundente, o curta-metragem Em Trânsito. Nele, a imagem do então governador de Pernambuco, Eduardo Campos, era posta em cena como um agente de um projeto desenvolvimentista do país (e as acusações resvalavam também na presidenta Dilma Rousseff) onde os carros se tornavam protagonistas de uma sociedade à mercê da máquina. As Leis da Robótica de Isaac Assimov todas quebradas. Um ano depois, Pedroso conclui seu terceiro longa-metragem, uma ficção documental, ou documentário ficcional, lírica e trovadora que, de forma muito clara, expande os temas e as cenas de Em Trânsito. Brasil S/A, o filme sobre a história de um país que virou CNPJ, maximiza, aumenta o volume e sobe ainda mais a câmera para filmar em tons operísticos as sombras dessa zeitgeist nacional.
A sequência inicial, uma montagem épica sobre a chegada de um navio ao porto, de onde desembarcam tratores que são locomovidos por rodovias e nelas ficam escoltados pela polícia como se chefes de estado fossem, dá o tom epopeico e, claro, irônico e cínico, sendo esses últimos elementos uma constante na filmografia do diretor. Em helicópteros, gruas, trilhos e tripés, a câmera está sempre fixa e as sequências de imagens são, portanto, tão firmes e precisas quanto a própria ideia do desenvolvimento pujante da economia, essa entidade vigorosa e robusta. Sustentados por uma trilha sonora orquestrada, igualmente opulenta, esses movimentos de quadro vão buscar dar conta de vários elementos do passado, presente e futuro de um país escravocrata, sexista, classista, religioso, vertical e carrocrata. O personagem-eixo é um trabalhador do corte da cana que, em algum momento, se vê substituído por uma máquina e termina indo trabalhar como operador de um trator, o que na leitura burlesca do filme, é recodificado como um astronauta dentro de uma nave espacial.
Entre a cana e o trator-nave, há o homem-caranguejo, a realeza do maracatu simulando a Casa Grande/Versailles em sua brancura, as idiossincrasias da classe média fadada a nascer, viver e morrer dentro de um carro, as pessoas-maquetes de condomínios fechados, os fieis tomados pela dádiva divina. Todos vivem à sombra dessa enorme bandeira verde e amarela, flamejante num céu não de estrelas, mas de muitos edifícios. Pedroso joga em várias frentes de tempo, espaço e símbolos e sua narrativa está concentrada em fazer do filme uma sobreposição de imagens que, mesmo sendo parte de um recorte crítico ao modelo de desenvolvimento da ex-colônia, têm significados isolados nelas mesmas. “Mas se a parte o faz todo, sendo parte, não se diga, que é parte, sendo todo”, diria Gregório de Matos.
Sem se utilizar de qualquer diálogo, a montagem de Daniel Bandeira caminha como uma sinfonia de três movimentos, um adágio introdutório com a dança dos tratores e da colheita da cana, um andante intermediário com a exposições de vários extratos sociais, e um allegro final com o desfecho dramático que começa com uma sequência já experimentada com Em Trânsito – a sinfonia dos carros regidos por um homem marginal se transforma aqui em tratores regidos por uma modelo vestida de biquíni – e termina com um, digamos, ensaio de apocalipse.
As escolhas de Pedroso são arriscadas, a amplitude de sua artilharia crítica é imensa, mas não deixa de ter uma coesão que dá uma unidade forte ao filme. A pontuar que, de todas as esferas desse ser e estar brasileiro abordadas como alegorias pelo filme, uma não deixa de reverberar com mais força ao fim da sessão. No momento que parece ser o mas estritamente documental do longa (posso estar enganada), vemos closes de mulheres e homens rezando dramaticamente numa igreja. A trilha é The Sound of Silence, de Simon & Garfunkel. “Olá escuridão, minha velha amiga. Vim conversar com você de novo, pois uma visão um pouco horripilante deixou sementes enquanto eu dormia. E essa visão que foi plantada em meu cérebro ainda permanece dentro do som do silêncio.”
Brasil S/A parece querer calar esse silêncio de um país que, nas visões (horripilantes) de seu diretor, vive em estado de delírio da ordem e progresso a qualquer custo.