:: Especial Mostra SP ::
A Gangue, grande vencedor da Semana da Crítica em Cannes este ano, já se anuncia formalmente distinto em seu primeiro e ˙único letreiro: “Esse filme é todo expresso em linguagem de surdos-mudos. Não tem, intencionalmente, qualquer legenda ou voz em off”. Construiremos nós os significados de todos os diálogos silenciosos do filme. Essa estratégia se mostra bastante conveniente para um diretor que, do começo ao fim, esgota seu trabalho na ideia de que a forma – nosso completo desconhecimento da linguagem em cena – dará o sentido, leia-se, a sensação de estranhamento e desconforto de quem assiste ao filme e projeta esses mesmos sentimentos no personagem protagonista.
Este é um adolescente novato enviado para uma escola exclusiva de surdos-mudos, onde passará por rituais de iniciação para participar de uma gangue que comete delitos e agencia as duas únicas personagens mulheres do filme, não à toa, ambas jovens prostitutas. O longa de estreia do ucraniano Miroslav Slaboshpitsky cria um modelo esquemático, fincado em uma série de longos planos-sequência meticulosamente coreografados, aliados a cenas de violência gráfica muito pensadas para chocar, mas sem real função para desenhar o caráter de quem os encena.
O filme trabalha a ideia de que o silêncio e as lacunas entre o que se passa na tela e a nossa intuitiva construção da narrativa são mais do que suficientes para moldar o ethos daquele grupo social de adolescentes, todos indistintamente postos como jovens sociopatas vivendo dentro de um sistema corrompido. A transição desse rapaz aparentemente inocente em mais um membro da “gangue” é, sobretudo, plástica. Tal como na primeira sequência em que o vemos de longe pedindo instruções de localização a uma senhora numa parada de ônibus, a câmera quase sempre mantém uma certa distância dele e dos demais personagens, como se realmente não pudesse, ou melhor, não quisesse identificar os elementos mais internos de cada um, suas reais motivações e conflitos. A pontuar que todos os atores do filme são, de fato, surdos-mudos, e por isso mesmo dispõem de movimentos próprios que poderiam sim ser mais explorados de perto.
A solução, muitas vezes, é filmar essas pessoas em corredores, a construção arquitetônica que melhor pode dar conta da aparente compressão e do universo estreito em que esses adolescentes vivem. Seja na escola ou num estacionamento de caminhões, para onde as duas meninas são levadas durante à noite e negociadas, as afuniladas passagens se tornam um arrimo onde o diretor se encosta sempre que possível.
Slaboshpitsky faz assim um filme, como tantos recentes, muito mais preocupado com o dispositivo que com os reais conflitos narrativos, esses sim, mudos. Possivelmente a cena que melhor simbolize esse excesso de zelo pela “instagramação” do enredo seja a da imagem acima, em que o protagonista e a aluna-prostituta por quem ele se apaixona fazem um belo e renascentista 69. É bonito e excitante de se ver, mas sabe-se que, na prática, o gozo se torna bem mais complicado para ambos os lados.
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