Amor, Plástico e Barulho, de Renata Pinheiro

Amor Plastico Barulho

:: Filme na programação da Mostra SP ::

A chamada “cultura brega” que rebola com barriguinha de fora pelas periferias do Brasil tem sido um campo bastante estimulante para que a indústria do consumo se aproprie de seus signos mais elementares e os resignifique em produtos prontos para uma classe média alta ávida em consumir referências externas (e de baixo) com o devido filtro do folclórico. Temos festas, ensaios fotográficos em revistas caras e recentemente até uma novela global a se usar desses artifícios.

Pois agora pegue esse coador de onde o brega escorria sem nata no copo de quem o consumia limpo, e jogue ele no lixo. Porque Amor, Plástico e Barulho não olha o brega de cima, de lado ou na diagonal. Olha de frente. E o resultado disso é um filme de personagens que nunca vimos antes, particularmente com mulheres que nunca vimos antes, não pelo menos do lugar de onde elas e seus corpos falam. Jaqueline e Shelly, respectivamente Maeve Jinkings e Nash Laila, nos contam das delícias e desastres de quem acredita que coração só é capaz de rimar com paixão e tesão.

As duas personagens centrais se movem na mesma direção, mas em sentidos opostos. Na primeira cena a vemos juntas no banheiro de alguma casa de show. Elas vomitam, se olham no espelho e retocam o batom. Essa maquiagem na realidade é a direção. E ambas irão a todo custo tentar sublimar o mundo lá fora com pesadas sombras nos olhos. Na cena seguinte entendemos por que sentidos elas caminham.

Jaque joga o cabelo de lado e entra no recinto carregando no olhar um certo tédio (um tédio sexy que ganha contornos de deidade com Maeve Jinkings) do ambiente. Sua carreira, e ela vai perceber isso logo, começará a entrar em declínio dali em diante. Atrás dela surge Shelly, cujo foco de luz estourado no rosto deixa claro seu deslumbre com o que a moça imagina ser o olhar dos outros sobre ela. A jovem dançarina acredita estar em plena ascensão. A presença dessa luz branca propositalmente artificial é o filme pela primeira vez usando dos recursos estéticos do próprio brega para criar em Shelly uma figura que enxerga o mundo pela lente subjetiva da fábula. Que, neste caso, será escrita como se com fonte itálica cor de rosa.

Esses movimentos das duas representam não apenas os atritos que surgem da inversão dos pólos, mas particularmente uma cumplicidade bastante feminina sobre os que elas entendem serem desejos mútuos das mulheres. Nesse sentido, é lindo ver um filme que, partindo de um cenário que costuma objetificar essas mulheres, usa de suas vozes para falar sobre o que elas entendem como sexualidade e de que maneira querem usá-la.

Para fazer isso sem apenas ter que falar disso, a diretora Renata Pinheiro, que vem de uma trajetória como artista plástica e de curtas-metragens que sempre exploraram a plasticidade da imagem, não abre mão de usar como interlúdios entre atos dramáticos algumas montagens de cenas do comércio de rua do Recife e de vídeos da internet sobre, por exemplo, a inauguração de mais um megalomaníaco shopping center da cidade.

Ao usar desse recurso, Renata expande os capítulos tensionais entre as duas personagens centrais para tratar da cultura brega em todas as questões que ela levanta: a obsessão pelo consumo, pirataria, o poder que a TV ainda exerce sobre as pessoas, a fuga social e a fugacidade de plástico daquele amor amplificado em caixas de som. Sem contar um interessante embate ideológico entre o analógico e o digital muito bem transposto num diálogo entre Jaque e Shelly, quando a primeira lembra, para espanto da segunda, que não havia playback quando ela começou a cantar.

Poderia seguir descrevendo os mais de 50 tons de gliter que pincelam o debate levantado por Renata. Mas tudo isso irá apenas adiar os inevitáveis parágrafos sobre a mulher por quem os sinos dobram nesse filme. Maeve Jinkings, prêmio de Melhor Atriz em Brasília este ano, domina sua personagem com uma força mesmo sobrenatural, dessas que nem o mais rebuscado infográfico do Discovery Channel poderia explicar. Seu poder em cena como a Norma Desmond do brega coloca o público do filme no lugar da plateia de Jaqueline. É uma personagem que precisa ser violentamente desejada e Maeve se transplantou para esse corpo de uma forma brilhante.

Em determinado momento do filme, ela deixa tudo isso explícito com uma cena que, acreditem, vai ficar pra história da filmografia nacional. As lágrimas correm pelo rosto de Jaqueline enquanto ela canta um “clássico” do cancioneiro brega. Não se assuste se no desfecho dessa sequência você sentir uma vontade quase incontrolável de começar a aplaudir de dentro da sala do cinema. E ficarão todos confusos sem saber se estão aplaudindo Jaque ou Maeve. Na dúvida, ambas merecem a honra.

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  1. Pingback: Entrevista com Maeve Jinkings | fora de quadro

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