Carinhosamente tomo emprestado o título do filme mais importante do ano – importante por tantos motivos que nomeá-los aqui seria escrever sobre outra história – para fazer uma retrospectiva do que vi no cinema nacional em 2013 e relacionar afetivamente essa experiência aos sons que ficaram comigo de todos eles.
Primeira observação: em retrospecto, vejo 2013 como um ano particularmente explosivo para o cinema nacional. O petardo foi plantado lá no começo de janeiro com a estreia do próprio Som ao Redor e seu inesperado sucesso comercial para um filme lançado fora do modelo Globo Filmes. O barulho advindo dele está ecoando até agora pelas poucas salas a exibir esse cinema de que vou falar.
Segunda observação: alguns dos longas de que trato aqui ainda não estrearam em circuito comercial, mas se neste texto estão é porque me causaram um impacto tão positivo que não poderia deixar de contar como uma experiência vivida durante 2013. São eles: Amor, Plástico e Barulho; Avanti Popolo; Depois da Chuva e Riocorrente. Todos previstos para um igualmente explosivo 2014. Assim se espera.
Terceira observação: O que se segue é um texto de ordem 100% passional. Não esperem análises.
Quarta e última observação: as comédias da Globo Filmes #nãomerepresentam.
Tendo tudo isso dito, lembremos que:
“Esse cara tem me consumido. A mim e a tudo que eu quis. Com seus olhinhos infantis…” Clécio pausa e olha para sua presa. Conclui: “…com os olhos de um bandido.” Irandhir Santos cantando para Jesuíta Barbosa em Tatuagem é de fazer Maria Bethânia se curvar e, como orixá que ela é, abençoar a força dramática desta que é uma das cenas que para sempre serão lembradas como parte essencial da memória do cinema brasileiro. Dorme com essa Hilton Lacerda.
Assim como também eterna será a imagem de Maeve Jinkings derramando lágrimas enquanto canta, a capella, um clássico absoluto do cancioneiro brega. Tal como a mesma Bethânia um dia recitou Fernando Pessoa, Maeve declama, simultaneamente sexy e decadente: “Na sua boca eu viro fruta. Chupa que é de uva. Chupa. Que. É. De. Uva.” Ficam atônitos os personagens no filme que assistem à cena. E ainda mais aturdidas ficam as pessoas dentro do cinema. Crepúsculo dos Deuses tal como ele é visto pela diretora Renata Pinheiro em um balcão abandonado de Amor, Plástico e Barulho.
Também desiludida, aqui não em personagem fictícia e não em palco, vemos Vanuza filmar a si própria enquanto chora ao som de Reginaldo Rossi: “Se o amor não presta e faz você tão infeliz, é bom cortar depressa o mal pela raiz, é bom tomar cuidado, não se machucar”. A primeira empregada doméstica do documentário Doméstica, de Gabriel Mascaro, dirige ela própria o drama de sua vida. Distante dos patrões, sua voz embargada nos apresenta à sua historicamente negada visibilidade.
Igualmente abalada fica a personagem da mulher em Riocorrente, ao assistir a Arnaldo Baptista cantar que “quando não mais houver cidade, eu vou te achar, com mil anos de idade, eu vou te achar”. É a dor do debate sobre o mundo, algo que senti na pele este ano quando fui a um show do mesmo Arnaldo Baptista e vi, incrédula, dezenas de pessoas saírem do espetáculo porque não estavam entendendo nada. Parece que tá todo mundo sem entender nada no mundo.
Um outro tipo de dor, essa ainda mais profunda que a dor da ignorância, foi cantada com o filme-verso de Caetano Gotardo, O Que Se Move. O lamento musicado de mães que, por diferentes motivos, perderam seus filhos, é na minha opinião um lindo fado que nem o mais triste dos portugueses conseguiria filmar. E olha que eles se empenham muito na elegante arte da lamúria.
Dos que se foram também fala Avanti Popolo, filme cujo título já invoca por si só um conhecido hino socialista. E ainda que a força da “bandiera rossa” se erga imponente ao subir dos créditos finais, é mesmo na melancolia de um rap russo, achado em um vinil por um dos personagens principais, que senti todo o peso do tempo perdido.
Aliás, poderia neste momento puxar o gancho fácil do “tempo perdido” para falar sobre os dois filmes que estrearam no ano baseados na história ou em apenas uma música do Legião Urbana. Mas isso seria, de fato, uma grande perda de tempo.
Prefiro falar daqueles que celebraram o som e os movimentos da mais primitiva das artes, a dança. Quero falar dos que dançaram para sobreviver à apatia e a automação da vida urbana em Esse Amor que nos Consome, o documentário fictício e ficção documental de Allan Ribeiro. Das índias que dançaram para celebrar sua própria identidade e força feminina em As Hiper Mulheres, de Carlos Fausto, Leonardo Sette e Takumã Kuikuro. Da dança desarticulada dos adolescentes que descobriram o punk no momento em que o Brasil se livrara da ditadura militar em Depois da Chuva, de Cláudio Marques e Marília Hughes.
Da Doce Amianto que dançou para curar sua solidão no filme-delírio de Guto Parente e Uirá dos Reis. Poderia Amianto ter esbarrado nessa mesma boate com Alessandra Negrini, que este ano mostrou para Jennifer Beals que a realidade de uma mulher abandonada na pista de dança é muito mais dolorosamente palpável. De cabelos assanhados, “she’s a maniac, maniac, on the floor”. De longe, o melhor momento no Abismo Prateado de Karim Ainouz.
E mais, prefiro falar da dança sinuosa e insinuante da professora a ensinar a difícil disciplina de Educação Sentimental a seu jovem e seduzido aluno, numa época em que, segundo Júlio Bressane, “o obsceno é a sensibilidade”.
Mas de todas as canções e danças, seduções e lamentos do cinema nacional em 2013, existem dois sons que, sem melodia alguma, estrugem alto nesse momento de olhar e escutar pelo retrovisor.
O primeiro vem de um documentário exibido em um momento simbólico para o Brasil. No ano em que a família de Vladimir Herzog recebeu o correto atestado de óbito do jornalista morto pelos militares, e no ano em que a Comissão da Verdade reconheceu a morte do deputado Rubens Paiva e, mais recentemente, do presidente Juscelino Kubitschek, como assassinatos orquestrados pelos generais da ditadura, pudemos assistir ao Dossiê Jango. O filme de Paulo Henrique Fontenelle transmite o som de um silêncio histórico. O silêncio que perdurou por cinco presidências eleitas democraticamente e que somente agora começa a sair de cena para dar vez e voz aos tenebrosos ruídos da ditadura militar.
O segundo, claro, vem do filme que dá nome a esse post. O agudo nervoso da chave arranhando o carro de madame (som este que será reproduzido em Riocorrente) e o grave tenso da maquinaria do elevador que liga a realidade da rua à cobertura de um apartamento são os terminais que, juntos, criam a sinfonia desse exílio que vivemos em falsa liberdade, igualdade e fraternidade. O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho, não é apenas sobre o som que nos cerca, o externo, o além. Mas com discurso contundente é o som interno de uma sociedade (“nós”, e não apenas “eles”) que, Narcisa, acha feio o que não é espelho.
De brinde e ainda falando sobre o filme de Kleber, deixo vocês ao som de Charles, Anjo 45, nesse embalo malemolente dos que se cansaram de tudo. Ao contrário do que acontece em Amor, Plástico e Barulho, aqui Maeve não canta. E ainda assim, nós precisamos escutá-la.
Estou sem palavras! Só posso me exprimir com <3 <3 <3 <3 <3!
Brigada Sonia de Ouro! <3
Ótimo.
Maravilhoso, Caroline! <3
muito lindas estas palavras… texto impecavel! Aplausos de pé!