Doce Amianto, de Guto Parente e Uirá dos Reis

doce amianto

Salve o delírio diante da dor e o desejo diante da destruição. Salve o que for fantasia, artificial, postiço e extravagante, salve toda quimera que possa remediar a solidão de uma cama vazia. Nesse estranho mundo de sobrevida em tarja preta, melhor é mesmo acreditar que a maquiagem e as fadas te salvarão da dormência e da demência. Entre o 8 e o 80, fiquemos pois com o 88. Sendo assim, Doce Amianto é um filme que não pede desculpas pela alucinação. Na verdade, faz dela uma linguagem manifesto corporificada numa personagem que carrega já em seu nome a (imaginada) negação de sua realidade, também reafirmada em poema de Walt Whitman no prefácio do longa.

Amianto, a fibra mineral conhecida por características como indestrutibilidade e por ser prejudicial à saúde do ser humano, é “doce”, no sentido de meiga, afetuosa e, sim, extremamente frágil, quebradiça.

O filme de Guto Parente, já conhecido por seus curtas de um onírico apuro estético, e do poeta Uirá dos Reis, usa de todo esse trans-bordamento para falar de trans-afetividade. Pois se a identidade de gênero passa pela performance, como diria Judith Butler, o feminino e o masculino serão postos aqui num palco em que só se dialoga a partir de uma dramaticidade propositalmente falsa e hiperbólica, como se a aparência do gênero tentasse fugir saltitante de uma heteronormatividade altamente rígida. Lo tuyo es puro teatro.

A história inteira parece um devaneio a discorrer sobre essas ideias. Mas não se enganem: nesse sonho existe uma clara proposta com início, meio e fim, guiados pela necessidade sempre urgente das pessoas em serem amadas. A primeira e a última cena do filme são provas disso. Doce Amianto, essa mulher no corpo de um homem, nos é apresentada escalando feliz uma escada na esperança que, do alto dessa torre de marfim seu príncipe encantado a acolha em seus braços. Acabará sendo jogada ao chão que, naturalmente, nunca será apenas um “chão”, mas a própria lama.

Rejeitada, essa personagem tão triste tentará sublimar o trauma em conversas com Blanche, um tipo de fada madrinha/anjo da guarda meio drag, meio duende. A história da própria Blanche diz bastante sobre as respostas sociais das aparências. A se falar novamente nelas, o filme usa ele próprio dos enquadramentos cuidadosamente pensados, das marcações de cena e dos jogos de luz (seja ele no quarto ou na boate) para criar esse ambiente/narrativa barroco e kitsch. Pois não é somente o gênero que se define pela performance. O amor com muita frequência adota o mesmo artifício.

Doce Amianto, no entanto, não é uma personagem alheia à sua condição trans-política. Só não consegue lidar com ela, tal como os todos os problemas da miséria e da ganância do planeta podem se dissipar diante de uma só mirada no espelho. Ou, em suas próprias palavras: “Preciso mudar o mundo. Embora eu prefira um segundo contigo, meu amor.”

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