Azul É a Cor Mais Quente é uma história de amor como qualquer outra. Mas assim como qualquer história de amor, é uma história como poucas. Para filmá-la, Abdellatif Kechiche estabelece um só critério como motor narrativo: o desejo. Existem várias outras medidas para contar a trajetória de um casal, mas claro está que o diretor, tendo ele mesmo esse olhar lúbrico diante de suas atrizes, está ali para tratar primordialmente do desejo, tesão, da pulsão dos corpos que colidem e se atraem.
Para tocar nisso, Kechiche usa de suas longas lentes e alcança os closes mais fechados possíveis nos rostos de seus personagens, dando significados extras a qualquer movimento dos olhos e das bocas insistentemente focadas. A ausência ou o transbordamento do tesão será visto em planos que namoram esses detalhes.
O diretor usa mesmo de um artifício literário que, se não justifica, endossa essa decisão. Logo no começo do filme, a jovem adolescente Adele escuta em sala de aula trechos de La Vie de Marianne, clássico absoluto do escritor francês Pierre Marivaux, conhecido por sua apreciação pelas minúcias descritivas a dar conta das cóleras em tempos de amor. A se notar que o título original do filme não deixa de ser um tributo ao próprio Marivaux: La Vie de Adele.
Ali dentro daquela sala, a protagonista escuta de seu professor que a tragédia é indissociável ao ser humano. Lá fora, uma vida inteira pela frente para fazer provar essa tese. Mas a euforia dos hormônios ainda emaranhados pelos primeiros estímulos sexuais vê na tragédia apenas o romântico, como assim deve ser e como sempre será.
Inspirado numa história em quadrinhos da francesa Julie Maroh, o filme de Kechiche toma decisões bastante distintas daquela da HQ. O destino das duas personagens centrais, que já é elucidado nas primeiras páginas dos quadrinhos, cede a um roteiro menos fatalista e mais próximo da experiência concreta de qualquer indivíduo que já tenha se apaixonado perdidamente por alguém. Acertadamente, o filme busca no argumento original seus maiores méritos, o uso da cor azul como suporte narrativo a identificar onde mora o desejo e a construção de relacionamento entre Adele (na HQ ela se chama Clémentine) e quem a cerca, particularmente Emma.
A escolha da atriz Adele Exarchopoulos para o papel principal é fundamental para esse tecer do desejo de que Kechiche quer falar. A câmera e o diretor namoram seu rosto em todos os ângulos e quando abre para mostrar seu corpo, deixa claro que está ali igualmente flertando, cobiçando. Faz todo sentido que o diretor tenha optado em colocar na personagem o mesmo nome da atriz. É por ambas (e por uma só) que ele se apaixona.
No entanto, se afirmar que Azul É a Cor Mais Quente é um filme que tem o olhar de um homem sobre uma história de duas mulheres, farei uma assertiva política que provoca uma série de questões sérias, todas do ponto de vista feminista. Entramos em um terreno bastante delicado que coloca na mesa os limites entre a arte e suas implicações políticas, se é que uma coisa possa ser dissociada da outra.
O lugar do “olhar” é, como sempre deve ser, facilmente posto em xeque por aquilo que ele representa socialmente. No caso específico desse filme, esse olhar não me parece ser única e exclusivamente masculino e, no desdobramento político disso, machista. Vejo antes como o olhar de um diretor que, para contar essa história de amor, optou pelo caminho da libido e, ao fazer isso, deixou propositadamente que a sua própria escorresse pelas cenas, nos dando a sensação de que ele quer que não apenas elas se desejem, mas que esse desejo pelo desejo entre elas seja igualmente forte. As cenas de sexo, nesse contexto, são absolutamente coerentes com o pulsar da excitação que o filme carrega. E poderiam ser igualmente entre uma mulher e um homem ou entre dois homens.
Além disso, é premente a necessidade do filme em estabelecer logo cedo que esse flerte com a protagonista faz parte da construção da personagem. Em coisa de 15 minutos de filme, vemos Adele com um charme displicente levantar três vezes sua calça jeans, sempre muito justa. O que pode ser interpretado apenas como uma obsessão masculina pela bunda da moça, vejo também a elaboração necessária de uma adolescente que ainda não tem consciência do efeito de seu corpo sobre quem a observa. Essa negação de sua própria identidade – física e emocional – e, por tabela, de seus desejos, é elementar para a apresentação da personagem e pontua o primeiro bloco do filme, quando um rapaz e uma moça que estudam na mesma escola se aproximarão dela a despeito de qualquer intenção da protagonista.
Adele nos é apresentada como essa pessoa à deriva, sem domínio algum do que sente. Mas em determinado momento, ao cruzar uma rua, ela irá vislumbrar o mar azul onde pode ancorar. O primeiro encontro de olhar entre ela e Emma (Léa Seydoux, perfeita em sua leitura de uma autêntica “dyke”) dará o tom de todo o relacionamento que irá se desenvolver ao longo das mais de duas horas e meia depois dessa cena. E o que poderia se tornar extremamente cansativo, afinal de contas estamos falando de uma história em boa parte filmada em closes muito fechados, ganha uma força narrativa não apenas porque as duas atrizes principais sustentam esse olhar de Kechiche, mas sobretudo porque ele sabe enriquecer o entorno.
A luminosidade do sol que por vezes estoura nos cantos da tela, as imagens quase impressionistas dos parques de Lille, as personagens observando a volúpia quase casta das mulheres nuas em óleo sobre tela e o fato de Emma ser uma jovem artista plástica em busca da expressão maior do corpo feminino são alguns dos elementos estéticos que darão camadas a um relacionamento todo construído no magnetismo das peles e na beleza plástica desse contato da carne.
É por isso que quando filma o sexo entre elas – e não existe apenas uma cena – o diretor demanda pela entrega total de suas atrizes às personagens. Sem esse sexo catártico e o júbilo do descobrimento do corpo alheio que se torna seu, a força entre Adele e Emma não seria tão legítima quanto é em toda a história. E nenhuma das duas atrizes se inibe nessa entrega, ainda que ambas tenham se mostrado arrependidas em entrevistas posteriores. De qualquer forma, a explosiva química entre elas se torna boa parte da força dramática desse filme.
E como toda história de amor, essa também é uma história sobre diferenças. Todos os elementos do filme são pensados cuidadosamente para criar os limites de personalidade entre Adele e Emma. A primeira vem de uma família que vive no lado direito das ideias. Quer que a filha tenha um emprego e marido. Seus pais servem na mesa espaguete à bolonhesa com vinho tinto. Já a mãe e o padrasto de Emma são os típicos liberais, confortáveis com a sexualidade da filha, conceituais, artistas. São também sábios em harmonizar uma boa ostra com vinho branco. Prato que, não estranhamente, é ele próprio uma metonímia para o sexo feminino.
Emma pensa em Sartre, Adele em Bob Marley. Emma quer ser artista, Adele, professora primária. E, no entanto, quem irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração? Certamente não será Kechiche e seus obsessivos closes nos olhos, bocas, poros e, claro, nas lágrimas. Porque a tragédia, diria o professor, pode ser tão prosaica em nossa existência quanto atravessar uma rua.
mt maneira a resenha!!!! li outras analises desse filme, mt gente criticando o suposto “male gaze” de kechiche e dizendo que o filme era machista e que ele era obcecado com a bunda de adele, etc (ex.: —-> http://www.autostraddle.com/blue-is-the-warmest-color-the-male-gaze-reigns-supreme-203158/).
concordo com o seu approach e tbm acho que o tal do “”””olhar””” de kechiche é mais auto-indulgente do que, necessariamente, machista.
ei po apenas 1obs.: tenho 100% ctz de que o filme nao se passa em paris. se nao me engano, é em lille, no norte da frança!!! parece que o parque que aparece no filme é a citadelle de lille.
Oi Maria Eduarda, brigada. Já corrigi lá no texto a localização ;)
Com certeza a melhor resenha que li! Tô meio obcecada com esse filme, eu achei tão desconcertante porque o sentimento ali era tão real que me senti meio intrusa, invadindo a privacidade do casal. Muito doido. E esse apego dele nos detalhes dos rostos lindos dessas moças deixa tudo ainda mais maravilhoso.
Vi o filme ontem. Gostei muito. Concordo com quase tudo que você disse em sua resenha. Essa paixão que o diretor tem pela Adele (personagem e atriz) é muito evidente durante todo o filme! Ele cria um clima de desejo e paixão, quase selvagem todo o tempo, que impressiona, nos causa um certo arrebatamento. Os críticos que o acusaram de machista, na verdade, inverteram as posições. Quem acusou o filme de machista é que é extremamente preconceituoso, acha que uma relação entre mulheres não se sustenta tendo como mote principal o tesão, o desejo, acho esse argumento pífio! Outra coisa que me impressionou no filme foi sua fotografia, linda! Deu uma áurea ao filme incrível que contribui com todo aquele clime tenso e ao mesmo tempo poético do amor das duas protagonistas. Quanto as polemicas cenas de sexo, tenho que confessar que achei um tanto exageradas. Ele poderia dar toda aquela sensação de realidade de outra forma, não precisava ser tão explícito. Colocar duas atrizes, sendo homossexuais ou não, fazendo sexo pra valer em uma cena é um pouco constrangedor. Esse constragimento não é pelo fato de assistir, mais sim pelas atrizes! Isso é expor a intimidade de alguém ao extremo. Entendo que elas concordaram com o método de trabalho de Kechiche mais compreendo que depois elas tenham se sentido tão mal. Enfim, situação delicada.
Há…adorei a comparação entre Sartre e Bob Marley, genial!
“Porque a tragédia, diria o professor, pode ser tão prosaica em nossa existência quanto atravessar uma rua.”