Jeanne Dielman e Os encontros de Anna, de Chantal Akerman

jeanne

O padrão do papel de parede do hall de entrada, o piso da cozinha, o pesado guarda-roupa de madeira do quarto, o mármore do banheiro, o lustre da sala, as cortinas, várias cortinas, abrindo e fechando o espaço para o mundo, mas sobretudo fechando. Cobertas de cama que guardam o pó do apartamento e de algumas tantas frustrações, móveis que foram herdados da família que achava que ela poderia ter conseguido marido melhor. Conheço a textura, as dobras e o cheiro mofado dessa casa como se fosse minha, porque ela, por força do imaginário, é minha de fato. Conheço essa casa porque ela não apenas é, como toda construção de espaço cinematográfica, uma narrativa em si. Mas conheço e sinto esse ambiente como se fosse meu porque ele me fala de uma condição de ser mulher que não foi escolhida, mas herdada, tal como os móveis da casa. Essa condição aqui se reduz a um endereço: 23 Quai du Commerce, 1080, Bruxelles. Dentro dela, vive Jeanne Dielman, que controla os objetos da casa como a casa controla seu corpo. Até que.

A decoração anódina do quarto de hotel está espelhada no olhar perdido e vago de uma cineasta cansada, viajando de cidade em cidade na Europa com uma valise em que guarda quase nada de roupa e um frasco de perfume que ajuda a manter algo de dignidade entre uma e outra estação de trem. Circulando entre portas automáticas, vagões e recepções de hotéis onde funcionários parecem estar sempre acometidos por uma apatia robótica, Anna/Anne Silver se move, ela mesma, como uma androide. Uma, porém, que pode ir e vir, deslocamentos solitários como o suprassumo da emancipação feminina. Onde chega, ela abre janelas. Talvez seja a tentativa de que algo lá fora a mova por dentro. Talvez seja para jogar aquilo que lhe move por dentro pra fora da janela, em queda livre. Mas de todas as hipóteses me agrada pensar que Anne busca absolutamente nada quando abre essas janelas, e só repete o gesto como um tique de uma geração que recém adquiriu a possibilidade de circular pelos espaços públicos. Colônia, Bruxelas, Paris, tanto faz. Só que.

Jeanne Dielman está presa nos tons ocres do lugar domiciliar onde está autorizada caber sua subjetividade. Anne Silver está presa no corpo cuja subjetividade não cabe mais nos não-lugares de quartos de hotéis e estações de trem que supostamente autorizam sua liberdade. Em ambas as situações, o jogo entre o externo e o interno, entre o ambiente que te consome como um dos objetos de cena, e entre aquele outro que te retroalimenta com um aparente vazio de identidade, opera uma fricção que fala não apenas sobre a obra de Chantal Akerman, mas sobre um modo de se repensar um texto crítico sobre projetos audiovisuais que pedem, ou melhor, clamam por um desvio nos padrões de observação.

Mas como evitar falar da economia dos gestos, da rigidez dos enquadramentos e marcações de cena, da fotografia de cores quase sem cor, do tempo dilatado a partir de uma montagem meticulosamente calculada para exceder o ponto limite de quando esperamos o corte acontecer, de todo o proclamado excesso de estilização e em como tudo isso implica diretamente em um calculado deslocamento para o extracampo de quem são essas duas mulheres? Se a realizadora e as atrizes (Delphine Seyrig e Aurore Clément) nos forçam, no caso de ambos os filmes em questão, a demoradamente contemplar a perturbada contemplação delas sobre coisas, paisagens e espaços vazios, penso que todas as categorias de análise acima citadas, além de mais algumas outras, continuem a serem importantes para fazer expandir o pensamento-cinema de Chantal. Mas talvez não sejam suficientes. Ou mesmo não a são da forma objetiva e pedagógica em que estão postas, sob as rédeas de uma exegese criada para fazer a “organização do mundo sensível numa forma significante”, como Luiz Carlos Oliveira Jr. bem definiria a mise en scène mourletiana.

Será possível, a partir do cruzamento de duas personagens que transitam por espaços, teoricamente, opostos, fazer surgir um mapa sem pressupostos cartesianos do que devemos ler antes e depois, da estrutura sequencial entre significante e significado? E se interpretar é o inevitável gesto de domesticação da nossa suposta maioridade intelectual, será possível interpretar a partir justamente da desorganização das imagens que esses filmes trazem tão organizadamente, fazendo com que essas duas mulheres se esbarrem e nos digam algo desse encontro? Não me interessam conclusões definitivas, somente potencializar variáveis de leituras.

anne

Primeira esquina:

Jeanne Dielman cozinha batatas, seu corpo inteiro numa cozinha. Pouco depois, seu rosto (e não apenas sua cabeça) é degolado num enquadramento que a guilhotina toda vez que ela recebe em casa o cliente da tarde.

Várias pessoas entram em quadro e enquanto todas elas descem a escadaria rumo à saída da estação de trem, Anne se isola do grupo e caminha para uma cabine telefônica no fundo da imagem. Não sabemos para quem ela liga, não escutamos o que ela fala.

No regime de ausências, do rosto (e, portanto, da afecção) e da voz (uma voz que, sabemos depois, precisa falar algo da ordem do desejo), Jeanne e Anne são dois corpos que preenchem os espaços a partir de algo que é comum a ambas: os sapatos. Jeanne anda pela casa e tudo que escutamos é o som dos sapatos entrando e saindo dos recintos, ligando e desligando as luzes no caminho, um gesto aliás extremamente familiar à entidade materna sobre a qual Chantal também quer falar. Anne, por sua vez, anda por estações de trem, corredores e quartos de hotéis e, igualmente, sentimos sua presença tomar o espaço pelo barulho dos sapatos que percorrem esses ambientes. Mas se Jeanne caminha quase sempre por um chão que é extensão de seu corpo – a casa não apenas como único território possível, mas como um prolongamento biopolítico –, Anne caminha por espaços esvaziados de subjetividade e essa sobreposição de imagem e som que parecem na mesma medida dormentes (chego a me lembrar em alguns momentos daquele efeito hipnótico da musiquinha cigana na trilha de fundo de Vera Baxter, de Marguerite Duras) funcionam aqui como a constituição de um lugar mesmo futurista, de gestos e barulhos robóticos. E ainda que percorram lugares tão distintos, o barulho dos sapatos que pontuam tempo e espaço em ritmos estáveis e controlados, vão demarcando o caráter de automação em ambas personagens. Não é também coincidência que, nos poucos momentos em que falam, elas não manifestam qualquer variação no tom de voz, a moça do google translator é certamente mais passional. Chantal, a diretora de estranhas mulheres androides. Café servido com dois quadrados de açúcar e um tanto de ironia.

Segunda esquina:

Vestida com um roupão de hotel, ela escuta quando ele a pede pra cantar alguma música. “O que é mais amável que uma canção na voz de uma mulher?”. Anne dá um passo à frente e começa: “Moi j’essuie les verres au fond du café, j’ai bien trop à faire pour pouvoir rêver”. Trata-se de Les amants d’un jour, conhecida na voz de Edith Piaf. Não é uma canção qualquer. Fala dessa mulher que limpa copos e na banalidade de sua vida, não tem tempo para sonhar. E que quando lembra de dois amantes apaixonados e cheios de vida em um quarto de hotel, ela chora: “Y avait tant de soleil au fond de leurs yeux que ça m’a fait mal. Que ça m’a fait mal” (“Havia tanto sol no fundo de seus olhos que isso me fez mal. Isso me fez mal”.) Não há sol nos olhos de Anne, somente uma certa compaixão. Que se repete a cada encontro. Na cena final, quando ela escuta as mensagens de sua secretária eletrônica, é como se ela estivesse trocando de estações de rádio (algo que ela faz no começo do filme). Impenetrável, porém amável na medida certa. Uma típica psicopata, alguns diriam. “Uma heroína do futuro”, Chantal responderia.

Jeanne limpa pratos e copos. Não há tempo para sonhar. Somente para repetir os gestos banais de uma santa-puta, dia após dia. Até que, em algum momento, algo se desprograma, ela esquece de algum gesto. E o café fica ruim. E o bebê que a vizinha deixa na sua casa passa a ser um objeto perigoso em suas mãos. A irritação começa a se manifestar em pequenos detalhes. A carne moída que ela mistura aos ovos é manuseada como uma carne outra, a de alguém, talvez, a dela mesma, quem sabe. Uma carne sobre a mesa depois que alguma coisa dá errado nunca será apenas uma carne sobre a mesa. A psicopatia das receitas de família.

Terceira esquina:

“Se eu fosse mulher”, ele diz, “não seria capaz de dormir com quem eu não amasse”. “Você não sabe disso, você não é uma mulher”, Jeanne responde.

“Se eu fosse mulher”, ele diz, “sabe o que eu faria? Ficaria grávido e esqueceria todo o resto. Iria pra algum outro lugar, viveria perto da natureza e amamentaria meu filho a cada duas horas”. “É de três em três horas”, Anne corrige.

O filho de Jeanne e o amante de Anne têm isso de imaginar o que fariam se fossem mulheres, sendo os homens que são. Sendo a mulher que é, Chantal Akerman os filma na plenitude de suas ingênuas empáfias. No caso de Jeanne Dielman, o filho está em primeiro plano, com a mãe desfocada ao fundo. No caso de Os encontros de Anna, a protagonista está fora de quadro. Dois raros momentos nesses filmes em que a câmera não está completamente dedicada a elas. A vida como um eterno ciclo de entrar e sair de cena à medida em que eles escolhem falar o que querem falar.

Quarta e última esquina a ser dobrada, onde elas se encontram pela última vez (ou talvez primeira):

Anne é constantemente filmada de costas. Jeanne, quase nunca. A primeira tem por ofício olhar, é uma cineasta. A segunda trabalha oficialmente como dona de casa, mas economiza dinheiro recebendo nobres senhores que lhe pagam por alguns minutos de sexo e, portanto, imagina-se que nessa função seu ofício é ser olhada. O mundo externo é cenário e casa para Anne, enquanto que para Jeanne, ele acontece somente em três ocasiões: no óleo sobre tela de uma paisagem marítima em uma das paredes da sala, pela intrusão de uma estranha luz de fora que pisca nessa mesma sala e nos momentos em que ela sai à rua ora para fazer feira, enviar uma carta ou procurar por um botão de um casaco. Portanto, quando são filmadas com a já citada temporalidade dilatada no isolamento de seus rostos, o que olham essas mulheres quando a câmera as olha frontalmente?

Anne parece a todo tempo olhar para absolutamente nada. Os homens falam com ela (e como eles falam!), pedem atenção, pedem uma amante, uma mãe para os seus filhos, um ombro para chorar mágoas, desejos e frustrações. Há também uma mulher que igualmente constrói um discurso lamuriante ao seu lado, ela pede que Anne se case com seu filho, que constituam família. Durante todos esses monólogos (visto que Anne quase não fala), a personagem está com o corpo presente em cena, porém seu olhar manifesta vacuidade, desterritorialização. Mesmo quando chora, ou seja, quando nos dá testemunho de algo que a move profundamente, seu rosto não indica motivos, seus olhos cheios de lágrimas não apontam para nada específico a não ser ela mesma. Anne só olha para fora de si no momento em que genuinamente sorri. E ela só sorri de verdade para a mãe, quando já não há aquela compaixão programada e condescendente que tem com os amantes. É para a mãe quem ela pode confessar, numa sequência que bordeja um tom incestuoso (a pontuar que as atrizes têm somente 12 anos de diferença de idade), que fez sexo com uma mulher. Anne finalmente pode falar e ser escutada. E assim pode respirar no olhar.

Jeanne tem um olhar igualmente vago. Em um dos momentos mais simbólicos do filme, quando Chantal não se abstém em compor o quadro perfeito para o estado emocional da mulher cansada em todas as frentes, somos sujeitas ao demorado e tortuoso ritual de Jeanne descascando batatas. O escorredor de prato, o detergente, o fogão, as panelas, as batatas sobre a mesa, a bacia, desviamos o nosso próprio olhar para todos esses elementos em cena enquanto ela olha pra baixo sem, de fato, olhar para algo específico. Alguma coisa está fora da ordem, sente-se. E por isso é tão difícil olhar para o que Jeanne não olha (a composição de uma cozinha) e para o que ela tenta olhar (si mesma). Jeanne só tem um olhar ativo em dois momentos: o primeiro acontece quando ela está escovando seu cabelo diante do espelho do quarto, único momento do dia em que ela tem um tempo só seu (não basta ter “um quarto só seu”, Virginia). O segundo surge no gesto final do filme, quando manchada com o sangue do homem que matou, há uma leve sugestão de sorriso em seu rosto. Ela olha para baixo novamente, mas finalmente parece encontrar algo cru de si mesma, algo carne. “Todo dia ela faz tudo sempre igual… e sorri um sorriso pontual”.

Adendo: lembro, após o texto concluído, de ter exibido os primeiros 15 minutos de Jeanne Dielman numa turma de especialização em cinema numa faculdade do Recife. Um dos alunos, um senhor que, imagino, devesse ter seus 50 e poucos anos, está confuso: “mas ela é mãe ou puta?” Desdobro a questão: somos mulheres ou máquinas de representação do ser mulher? O que fica entre esses extremos? Respiro e penso: Bingo, Chantal.

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