Democracia em vertigem, de Petra Costa

Democracia em vertigem

Não há vertigem sem a iminência da queda. Não há possibilidade de queda sem ao menos a sensação – ou certeza – do abismo adiante. Portanto, quando se fala em Democracia em vertigem, imediatamente recai sobre o título o peso de estrutura vertical que a palavra “vertigem” carrega. O quão vertiginoso é o precipício em questão? Qual a profundidade do buraco de que se está falando? Percorrer o caminho da vertigem requer, portanto, um mergulho no abismo. E, no entanto, o documentário que surge com esse título sobrevoa a grande cratera democrática sem intenção nenhuma de descer para perto do chão, mantendo-se segura e confortável tal como um controlado e estável voo de drone.

A proposta panorâmica de compilar em duas horas o que se passou no Brasil desde as eleições de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002 – concentrando-se mais especificamente nos acontecimentos pós as chamadas Jornadas de Junho de 2013 – dialoga muito bem com uma certa gramática já familiar das redes sociais em criar apontamentos sintéticos atravessados por frases de efeito de poética duvidosa – Lula é descrito, por exemplo, como “um escultor cujo material é a argila humana” –, em que se tenta criar uma comunicação simples e acessível de acontecimentos bastante intricados.

O novo filme de Petra Costa funciona assim como material didático básico para aqueles que desistiram de acompanhar os últimos acontecimentos, ou para os que não tiveram tempo/interesse em fazer algumas costuras básicas da macropolítica brasileira, ou talvez até mesmo para pessoas que aderiram ao discurso de que a apolitização da política era o único caminho possível. Funciona também para suprir aquele momento em que se tenta explicar para pessoas de fora do Brasil, em palavras descompromissadas com processos históricos, o que se passou no país desde que Lula assumiu o poder em 2003.

O filme, enfim, funciona. Nesses termos. Para algumas pessoas. Particularmente para aquelas pessoas (da sala de jantar?) que, uma vez tendo reconhecido seu lugar na pirâmide social, passam a acreditar que o limite da ação está nesse próprio auto reconhecimento, e não na luta efetiva para que a pirâmide em si desmorone. Se mostra, assim, uma cartilha eficiente, envolta por um calculado verniz publicitário de emoções convocadas por teclas de piano soltas aqui e ali sobre as imagens firmes de uma steady-cam. E como filme-função, ele poderia ter ido muito mais longe se conseguisse atravessar, de fato, isso que se coloca como mote maior do documentário: o se reconhecer como parte do problema. Há um abismo aí. Mas o filme decide apenas sobrevoá-lo, sem qualquer intenção de mergulhos mais profundos.

Porque quando Petra declara na narração em off que é herdeira tanto da elite empresarial que sempre esteve no poder, à revelia dos partidos que assumissem o discurso desse poder, quanto de pais que, mesmo fazendo parte dessa elite, tiveram que sair do Brasil em função da Ditadura Militar, há aí o potencial para um debate sério sobre uma porção de coisas. Sobre, por exemplo, o comprometimento real da elite intelectual brasileira de esquerda, essa que sempre fez filmes sobre o “povo” e escreveu livros sobre o “povo”, em se implicar no processo histórico a ponto de se colocar como objeto de estudo desse processo, sobre o próprio direito ao registro de imagens que essa elite sempre teve – os filmes de arquivo pessoal, aqui vistos aos montes, a quem podem pertencer? -, sobre o próprio conceito de democracia e a quem ele serve. Mas rever tudo isso exige uma predisposição a um processo de autoanálise que é duro, difícil, abre feridas que a diretora possivelmente não está interessada em revelar. É direito dela, naturalmente. Mas desse não se entregar surge um filme superficial e, mais grave, destinado a redimi-la dessa posição… “desconfortável?” de elite.

Trago exemplos: em um dos momentos mais promissores do filme, quando a diretora revela que em duas placas, postas em lado opostos do Palácio da Alvorada, o nome da sua família Andrade Gutierrez está cravado como participante da construção tanto do governo Collor (de direita) quanto do governo Lula (de esquerda), joga-se água sobre a bomba antes mesmo desta ser ativada. Aquilo que parecia ser o começo de um debate mais sólido sobre o quão o próprio fazer fílmico da diretora – e toda a estrutura que ela teve para fazer esse documentário e distribuí-lo – está afetado por esse lugar de poder de onde ela fala, se encerra com imagens de arquivo da construção de Brasília por sobre a as quais Petra Costa fala: “Era triste ver um partido que elegemos na promessa de transformar o sistema se embrenhando numa estrutura promíscua de financiamento de campanha desenhada pra tornar qualquer mudança impossível”.

A “mudança impossível”, a realizadora esquece de acrescentar, parece falar mais sobre ela mesma do que sobre o Brasil. A tristeza, ao contrário do que a narração diz, não é pelo país, é por saber que o sistema ao qual ela se refere é ela mesma. No entanto, essa ambiguidade bastante rica do ponto de vista documental, não está contida no texto do filme. Ao falar de sua tristeza, a diretora desvia estrategicamente a atenção de estar ela no meio dessas duas placas cravadas pelo nome Andrade Gutierrez, para um discurso de senso comum e fácil adesão que seria o da decepção com o PT.

Em outro momento mais adiante, ainda dentro do mesmo Palácio da Alvorada, outra grande possibilidade cinematográfica se põe diante dela. Três faxineiras, contratadas por uma empresa de terceirização de limpeza (outro dado que poderia ser explorado, mas não é), limpam a escada do ambiente que, há poucas horas, era habitado pela presidenta destituída Dilma Rousseff. Uma delas sai de quadro, indicando um imediato desconforto com a presença da câmera e uma recusa em comentar sobre o assunto que se colocava naquele momento. Uma das duas que permanece na escada fala aquilo que é, sem dúvida, a única frase vertiginosa do filme: “Acho que democracia não existe não, o direito da gente votar não existe não”. Taí. Eis o abismo. Falado numa escada! (elemento cênico este que não é explorado). Nunca existiu democracia para essa mulher. Mas para Petra Costa, a democracia está sempre registrada numa primeira pessoa pueril, em certa medida infantilizada, a partir de imagens de arquivo dela mesma indo votar pela primeira vez, ou girando no ar ao comemorar na Av. Paulista a primeira eleição de Dilma.

Novamente, a ambiguidade desses dois registros, a não-democracia da mulher que limpa o palácio sendo contratada por uma empresa terceirizada versus a democracia primaveril da diretora herdeira da elite brasileira, é jogada de lado. Imediatamente após o depoimento da faxineira, o que se escuta é Petra Costa falando: “depois do impeachment, todos os olhos se voltam para a próxima eleição presidencial”. A frase soa quase como uma recusa do que a trabalhadora do Palácio havia acabado de falar. A próxima eleição vai acontecer. A máquina da democracia ainda opera. A despeito do que se fala no próprio filme, a despeito do assassinato de Marielle Franco (vertigem real essa que passa longe do filme). Sintomático de um texto que parece pronto antes mesmo da documentarista capturar as imagens e ser guiada por elas.

O fato é que Democracia em vertigem ao invés de disparar, em nós mesmas/os, a vertigem em si – ainda que não seja da democracia, mas somente da própria diretora – tenta explicá-la a partir não apenas com palavras empenhadas em uma pedagogia bancária, de depósitos de informações (FREIRE, Paulo) acumuladas como uma catalogação de causa e efeito, mas sobretudo a partir de uma técnica barata de ativação de emoções que dispensa qualquer enfrentamento ao regime ético das imagens em nome de uma estetização da dor. Como diferenciar o tão citado travelling de Kapo do momento em que a diretora aqui decide jogar sua câmera sobre o corpo morto de Dona Marisa, para depois mostrar Lula chorando e, sem seguida, abrir a câmera para um plano aberto onde vemos a imagem de Lula e Dona Marisa se abraçando em um cartaz gigante ao fundo de um velório abarrotado de gente? “Da abjeção”, esse texto de Rivette que nunca cansa de se atualizar.

A se falar em Lula, digressões: faz-se necessário frisar que não é à toa que o projeto de poder em curso no país se mostra tão empenhado em manter preso o sujeito que melhor sabe articular o sentir, e não o entender. Estamos na ordem do sensível, e não da razão. E eles sabem disso. Não há cartilha que pareça ser capaz de vencer a energia feroz de um pastor, não há explicação que consiga superar a adesão imediata a um meme, e eles, mais uma vez, sabem disso. E sabem que Lula é aquele sujeito que, a despeito de qualquer razão, agrega um sentimento partilhado de esperança. É no campo do sensível que não se explica, que não se cataloga, que não se narra, que as coisas estão sendo dadas. Mas, ao que parece, o grande documentário brasileiro de 2019 é justamente aquele que será celebrado por tentar explicar em pouco mais de duas horas as complexas fundações do Estado Democrático se usando de uma linha narrativa for dummies. Aqueles três minutos e meio em que Serras da desordem, de Andrea Tonacci, condensa toda a história do Brasil em uma montagem frenética oscilando entre o “descobrimento” e o “desenvolvimento” da nação têm uma capacidade de acionar muito mais pensamento expandido do que o filme inteiro de Petra Costa.

Novamente, repito: esse documentário teria muito a nos falar se a diretora, de fato (e não como pedido de perdão), se implicasse na História. A maneira como ela arranha a superfície do problema me joga para um outro documentário recente brasileiro que, apesar de ser infinitamente melhor articulado em sua montagem-colisão de imagens, repete o mesmo ato falho de uma narração que inteligentemente julga as imagens apenas quando não está dentro dela. Em No intenso agora, de João Moreira Salles, o diretor fala de como uma babá negra de uma família de classe média branca brasileira recua da imagem quando esta precisa ser registrada pelo enquadramento oficial da câmera. E, no entanto, quando nas imagens de arquivo da família do próprio diretor se revela a babá que cuidava dele e de seus irmãos, o debate sobre esse corpo servil se silencia, como se esse fosse o momento de dar alguns passos para trás, pois: perigo. A ideia do recuo que atravessa todo o filme de João Moreira Salles é uma potente para pensarmos, sobretudo, no movimento que tanto a narração dele em No intenso agora, quanto a voz de Petra Costa em Democracia da vertigem fazem quando decidem lidar com seus respectivos abismos para falar de contextos políticos macros a partir de esferas íntimas micros: elas recuam. No cinema que se pretende realmente libertador, explosivo, denunciador, não é assim que funciona. Não funciona.

3 respostas em “Democracia em vertigem, de Petra Costa

  1. Cheguei aqui pela Gabriela Terenzi. Impressionante sua leitura. Também tinha ficado com um incômodo com o filme, apesar de não ter consigo pensar claramente sobre os problemas. Mas é isso: a Petra se furta das questões difíceis de desigualdades estruturais e das distâncias brutais entre as percepções/vivências de democracia entre a funcionária terceirizada limpando a escada e a diretora intelectualizada e de esquerda. Excelente resenha crítica.

  2. gostei muito da leitura também e coincido com ela. acho que lançar-se a esse abismo que é o gesto de se auto-questionar em relação a história de violências na qual estamos imersas abriria uma perspectiva de transformações num caminho mais indefinido, arriscado e necessário de tudo, da própria realizadora, dos espectadores e das possibilidades do que pode ser um filme.

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