Bush Mama, de Haile Gerima (especial Janela de Cinema)

Bush Mama

Dorothy observa o mundo de sua janela e no recorte dessa moldura o que ela vê e ouve é um espaço que repele e nega sua subjetividade. Portanto, muitas das vezes em que Dorothy se põe diante dessa janela, seu corpo se revela cansado, o seu próprio exercício de olhar o mundo vem carregado com a vontade de desistir dele. Ainda assim, ela insiste em olhar, como se a atitude em si mesma fosse uma possibilidade de resistência. Quando Haile Gerima filma a atriz Barbara Jones na ação de se colocar observando o ambiente externo enquanto, internamente, tudo lhe sugere não desafiar o que está dado lá fora, sob a moldura retangular da janela de um apartamento na periferia de Los Angeles, há na repetição desse enquadramento uma forte marcação política sobre o próprio cinema ao qual Gerima está vinculado. Um que está ciente do quão insubordinado pode ser o simples gesto de levantar os olhos. E observar o mundo de sua própria janela. E ligar uma câmera.

Quando surgem então as primeiras imagens de Bush Mama (1979), segundo longa-metragem de Gerima, aquilo que a princípio parece ser a encenação de mais um baculejo da polícia na população negra é, na verdade, uma declaração pessoal do diretor sobre seu direito de olhar. Não sabemos, e o filme em nenhum momento revela esse dado, mas as cenas projetadas em câmera lenta na abertura do longa são da própria equipe de filmagem, incluindo aí também o diretor, sendo abordados pela polícia no meio da rua. A câmera que captura essas cenas está atrás de uma janela, escondida, discretamente dando um zoom no que vê.

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Dando um rolê, de Larry Clark (especial Janela de Cinema)

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Há uma sequência-chave em Dando um rolê, de Larry Clark (1977), em que um grupo de músicos negros discute o futuro do jazz, ou ao menos do jazz que eles querem tocar, no salão de um bar à meia-luz, onde as paredes e os cartazes de militância negra colados nela reverberam um campo energético de luta. Vozes se cruzam, ânimos se alteram. De um lado, a turma do “preciso pagar minhas contas”, também conhecida como “temos que tocar a música que a música que a indústria quer ouvir”. Do outro, um protagonista que contesta: é preciso parar de viver para e pelo sistema, leia-se, o sistema branco de fazer as coisas (e ganhar muito dinheiro com isso) e começar a fazer “para nós mesmos”.

A sequência faz uma construção crítica de como o jazz foi facilmente cooptado por essa indústria que não apenas tantas vezes o domesticou em nome do mercado, como simultaneamente colonizou toda a engrenagem de quem fazia essa música estabelecendo os limites de quem podia ou não entrar no clube. Warmack, o cara que tem “guerra” no nome e que nos leva pela mão nessa história, quer implodir o clube. Na mesma medida em que Larry Clark quis, a partir dos mecanismos de linguagem que o cinema possibilita, implodir as convenções que determinaram quais desses mecanismos fariam parte de um cinema “legítimo”. Pois que dentro de um sistema. Pois que parte de uma indústria. Pois que branco.

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O estranho que nós amamos, de Sofia Coppola

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Quando Virginia Woolf escreveu em 1929 o ensaio Um teto todo seu, se fundava ali uma consciência sobre a cruel relação entre a mulher e os espaços físicos negados a ela. Como poderia uma mulher se tornar escritora, cientista, autora de qualquer tipo de conhecimento sem que se desse a ela um teto, um só que fosse, todo seu? Podia ser um quarto pequeno, um puxadinho da casa, um espaço qualquer onde ela pudesse produzir em paz. No cinema, essa relação problemática entre a mulher e os espaços por ela ocupados são desde sempre uma questão central no debate sobre a representação dessas personagens em cena.

Então quando Sofia Coppola insiste na repetição do enquadramento de uma grande casa que é vista pela câmera como uma entidade de poder, onde quem controla o que entra e o que sai dessa propriedade são sete mulheres, não se engane e não coloque confortavelmente todo peso dessas sequências em uma obsessão estética e formal da diretora, porque há um pronunciamento territorial sendo feito aí. O corpo dessa casa é uma extensão do corpo das mulheres que vivem dentro dela e, portanto, só toque nele se for convidado para isso.

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A (ausente) questão racial em The Handmaid’s Tale e Big Little Lies

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Síndrome do Entusiasmo Por Motivos de Séculos de Imposição das Narrativas Patriarcais. Ou, para facilitar a vida, SEMSINP. Se você não é homem branco, heterossexual e cisgênero, certamente já foi alegremente contagiada/o pelo SEMSINP em algum momento desses últimos anos. Em 2017, particularmente, a tal síndrome, facilitada por outro fenômeno conhecido como o “filme-ou-série-tem-que-ver” das redes sociais, manifestou sintomáticas ondas de euforia particularmente entre nós, feministas, que escutamos Jessica Chastain dar textão em Cannes sobre a péssima representação da mulher no cinema e que vimos nascer, finalmente, o primeiro filme da Mulher Maravilha e séries fortemente pautadas pelo debate feminista como Big Little Lies, The Handmaid’s Tale e I Love Dick, todas as três baseadas em livros homônimos escritos por mulheres. Não, pera, escrito por mulheres brancas. Mas vou chegar aí já já.

Sou uma vítima – feliz vítima – da SEMSINP. Para os desavisados, foram séculos e séculos não apenas de sub-representação da mulher, mas de uma representação perversa da mulher na literatura ocidental. O cinema e, depois, a televisão são herdeiras disso. De modo que estamos, sim, na fase do “manda mais Mulher Maravilha que tá pouco” porque na balança da invisibilidade histórica, qualquer cena de uma amazona enfrentando sozinha um exército de homens pesa mais do que vários minutos de mansplaining que o mesmo filme nos dá de presente. Mas porque as leituras vão se acumulando e, sobretudo, as conversas com outras mulheres me dão alguns educados e necessários tapas na cara, simultâneo à euforia, começo a educar meu olhar (ou tentar, ao menos) para perceber situações que, cinco minutos atrás, eu não perceberia.

Eis então porque me parece urgente criar um momento de respiração e apaziguamento dos ânimos, esses sempre tão acirrados nas já citadas redes sociais, para que, nos tempos vindouros, tenhamos não apenas mais filmes e séries dirigidos, roteirizados e protagonizados por mulheres, mas que esses produtos audiovisuais consigam dar conta de toda a complexidade e intersecções que desfaçam essa ideia essencialista e abstrata do “ser mulher” como a mulher branca heterossexual. E agora sim, vamos à premissa central deste texto: as problemáticas questões raciais em duas das séries mais celebradas por nós, feministas, em 2017: The Handmaid’s Tale e Big Little Lies.
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Joaquim, de Marcelo Gomes

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Surge o primeiro plano e nele o que vemos é a imagem da cabeça decapitada de um homem, exibida em praça pública. Imediatamente, somos levados a imaginar os percursos do corpo que teriam movido essa cabeça ao destino que lhe foi dado. E eis aí o centro de toda a questão problemática da relação do brasileiro (mas não só do brasileiro) com a história de seu país. Levados a acreditar sempre em um processo racional de “tomada de consciência” em nome da mobilização do mundo, somos induzidos à conclusão de que a cabeça, símbolo da razão, é aquilo que transforma, o que combate, o que enfrenta. Nessa supervalorização de uma consciência estritamente cartesiana, negligenciamos o corpo, seus gestos e afetos, na condução emocional, e não racional, das ações históricas. Joaquim, o mais novo filme de Marcelo Gomes, é um potente exercício de, como diria Walter Benjamin, “escovar a história em contrapelo” não exatamente porque se propõe a contar uma “outra” versão dos fatos, mas fundamentalmente porque faz isso a partir do corpo, e não da cabeça.

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Julieta, de Pedro Almodóvar

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“Tu ausencia llena mi vida por completo y la destruye”, nos fala a protagonista com a voz salgada de lágrimas. De fundo, a trilha de Alberto Iglesias dá grifo nas palavras e o cenário do habitual vermelho que carrega todas as escalas dramáticas entre o sangue e o batom povoa o entorno. As coordenadas geográficas estão todas dadas, estamos de fato em mais um filme de Pedro Almodóvar. Mas algo além da pessoa a quem se faz referência na frase acima também se encontra ausente nesse filme, algo que diz respeito ao modo de fazer cinema com o qual o diretor se tornou a referência de dez entre dez cinéfilos de multiplex, ou melhor, ao modo como justamente esse “estilo Almodóvar” se tornou refém de si próprio.

Julieta tem quase tudo que os melhores filmes do cineasta espanhol têm: traz de volta uma personagem feminina central com toda a complexidade que lhe é de direito, atrizes novas à sua filmografia – Emma Suárez como a Julieta mais velha e Adriana Ugarte em sua versão mais nova -, uma relação familiar partida – novamente entre mãe e filha, como já havia sido posto em Volver -, cores marcando as tensões da narrativa – neste caso o embate emocional entre vermelho e azul -, uma câmera desejante de corpos que se desejam – femininos e masculinos – e Rossy de Palma como a personagem fora da curva, neste caso, no papel de uma conservadora trabalhadora doméstica muy pouco simpática que, quando filmada aqui no registro do gênero de terror, se torna, por supuesto, cômica. Mas a despeito de possuir os códigos necessários, a Julieta falta justamente aquilo que de melhor Almodóvar conseguiu criar em nosso imaginário quando se abre na tela o logo da El Deseo: a estranha e irresistível empatia que sentimos por personagens transbordantes.
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As montanhas se separam, de Jia Zhang-ke

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Há bandeiras sendo içadas em nome da Memória, há dentes trincados na luta pela Memória, há resistência em todas as esquinas mal iluminadas dessa Memória. Mas se seu nome é repetidamente conclamado em tantos campos de batalha, é porque o motivo dessa agonia se põe cada vez mais predador em suas intenções. O Apagamento da Memória é uma ameaça que, por exercício do ofício, se faz invisível. O diretor chinês Jia Zhang-ke sabe disso e lida com esse fantasma devorador de espaços e tempos desde que começou a fazer cinema, disparando sua câmera para registrar e preservar as imagens que o inimigo tenta dissipar.

Com seu mais novo filme, As montanhas se separam, o cineasta faz uma nova curva na narrativa dessa batalha épica da Memória Guerreira contra o Dragão da Aniquilação. Com a ironia que lhe é própria, ele nos conta como é possível que a ideológica promessa de um mundo novo, onde “o céu será sempre azul”, é um discurso que facilmente consegue ser domado para que possamos sublimar nossas perdas, o apagamento de nossas lembranças.

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Mate-me por favor, de Anita Rocha da Silveira [especial Janela de Cinema]

Mate me por favor
Existe uma vasta e bastante diversa filmografia no mundo dedicada a elaborar a adolescência como um ecossistema de implosões e explosões, conflitos ideológicos, descobertas erógenas e experiências transgressoras. Um ambiente úmido bastante propício para se cultivar todo tipo de pauta existencial e, por que não, política. A pergunta que isola a palavra “política” depois da vírgula diz respeito diretamente ao rumo que o primeiro longa de Anita Rocha da Silveira toma de largada, somente para depois rejeitar esse caminho e pegar uma curva estranha para um lugar que nega todo seu potencial debate. As pistas plantadas por esse caminho para onde filme parece ir são recolhidas em algum momento e substituídas por um outro discurso esvaziado de… discurso. E apegado a um formalismo que não diz muita coisa em si mesmo.

Tudo se dá da seguinte forma: a sequência inicial nos mostra uma garota em situação de vulnerabilidade que somente uma mulher pode sentir. Sozinha, em uma cidade-deserto, ela é filmada por uma câmera que prevê a tragédia. E isso, de fato, ocorre. Desse primeiro assassinato, surge uma narrativa guiada por alunas de uma escola na Barra da Tijuca, o bairro não-cidade do Rio de Janeiro. As meninas começam a construir histórias em cima daquela e das subsequentes mortes de outras meninas cujos corpos aparecem nesse mesmo terreno baldio cercado por um horizonte de condomínios assépticos e onde ali perto também acontecem cultos pop-evangélicos. Está tudo dado pelo recorte do filme: garotas estupradas e assassinadas + ironia sobre alienações religiosas + a câmera que abre a lente para filmar os espaços vazios da Barra da Tijuca, com estações de ônibus que mais parecem cenários distópicos pós-apocalípticos. E quando tudo aponta para uma alegoria do terror que é ser adolescente nesse ambiente onde apatia, alienação e violência se tornam rima, eis que o filme começa a se soltar de todo e qualquer conteúdo político que, porventura, pudesse ser lido nele. E tudo fica muito confuso.

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Boi Neon, de Gabriel Mascaro [especial Janela de Cinema]

Boi NeonTudo o que é ar se desmancha em sólido. Como a poeira que sobe e se molda aos corpos daqueles que fazem a poeira subir. Pessoas simultaneamente difusas e densas estão no recorte da câmera e elas não têm uma história a contar além do que está contido nelas mesmas. Elas não têm um lugar de onde partir e para onde chegar. É a estrada sem começo e fim o que as constitui. Boi Neon é, portanto, um filme sobre a sensibilidade do ar enquanto corpo, do corpo enquanto ar, e essa é a única transformação, e o único caminho, que importa ao diretor Gabriel Mascaro em seu mais novo longa. O que interessa aqui é a transformação que se basta dentro do seu próprio desejo de transformar.

Os corpos-sentidos e corpos-cenários do filme são construídos a partir de seus respectivos desejos. O de um vaqueiro que quer ser costureiro, de uma menina que sonha em ter cavalos e o da sua mãe que, entre performances onde se antropomorfiza em seres equestres, espera não perder a ternura a despeito dos coices que leva e dá. Fosse uma narrativa convencional, era de se esperar que esses desejos movessem os personagens entre os momentos do querer e o da realização/frustração. No lugar de realizar esse trajeto, Mascaro opta por acompanhar essas pessoas sem delas cobrar resoluções, sem exigir nem mesmo que estabeleçam as relações mais óbvias entre elas. E faz isso a partir de um ostentoso ensaio estético-político sobre os papeis sociais desses corpos e a relação simbiótica entre eles e os animais que tangem.

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Que horas ela volta?, de Anna Muylaert

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Que horas ela volta?, pergunta o menino para a empregada da casa. O verbo tem o peso de muitas dúvidas, não apenas a explícita indefinição do tempo (a hora do regresso), mas a disfarçada incerteza sobre se ela, de fato, volta, e se, uma vez voltando, estará, de fato, presente. Na cena de abertura do filme, uma pergunta sobre voltar talvez seja a primeira pista de uma narrativa sobre partir. Partir pra outra história de se contar as histórias. Partir conceitos cristalizados, paredes invisíveis e indivisíveis, partir ao meio o tapete que cobre a sujeira. Partir da mulher a fala, e mais, partir da mulher preta e pobre essa voz. A diretora Anna Muylaert mira no avesso das palavras para dizer que precisamos partir/quebrar/rasgar/abandonar para, de fato, conseguir voltar e reencontrar o lugar e as pessoas que nunca deveriam ter sido deixados para trás.

Os anos se passam e o menino do começo do filme que faz a pergunta para Val (Regina Casé) se transforma em um adolescente. Assim como se torna uma adolescente a menina com quem Val falava ao telefone, sua filha que esperava também ver sua mãe voltar para casa. Logo se entende que o filme parte de um lugar (bastante) comum na vida privada do brasileiro: a empregada que deixa de cuidar dos seus filhos para criar os filhos dos patrões. Fácil seria fazer um filme sobre a Val vítima desse sistema, coitada, ou a Val sendo redimida por algum letrado homembranco/mulherbranca que iria lhe tirar os grilhões da escravidão psicológica. Mas Anna Muylaert, que poderia ela mesma vestir a manta da mulherbranca letrada generosamente estendendo sua mão salvadora, decide ouvir o que sua personagem tem a dizer. E ouvir em terra de surdos é fazer arte.

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