Dando um rolê, de Larry Clark (especial Janela de Cinema)

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Há uma sequência-chave em Dando um rolê, de Larry Clark (1977), em que um grupo de músicos negros discute o futuro do jazz, ou ao menos do jazz que eles querem tocar, no salão de um bar à meia-luz, onde as paredes e os cartazes de militância negra colados nela reverberam um campo energético de luta. Vozes se cruzam, ânimos se alteram. De um lado, a turma do “preciso pagar minhas contas”, também conhecida como “temos que tocar a música que a música que a indústria quer ouvir”. Do outro, um protagonista que contesta: é preciso parar de viver para e pelo sistema, leia-se, o sistema branco de fazer as coisas (e ganhar muito dinheiro com isso) e começar a fazer “para nós mesmos”.

A sequência faz uma construção crítica de como o jazz foi facilmente cooptado por essa indústria que não apenas tantas vezes o domesticou em nome do mercado, como simultaneamente colonizou toda a engrenagem de quem fazia essa música estabelecendo os limites de quem podia ou não entrar no clube. Warmack, o cara que tem “guerra” no nome e que nos leva pela mão nessa história, quer implodir o clube. Na mesma medida em que Larry Clark quis, a partir dos mecanismos de linguagem que o cinema possibilita, implodir as convenções que determinaram quais desses mecanismos fariam parte de um cinema “legítimo”. Pois que dentro de um sistema. Pois que parte de uma indústria. Pois que branco.

O crédito de abertura do filme já antecipa as intenções de Clark em refundar essa narrativa. Puxando forte nos tons vermelhos e azuis das imagens sobre um fundo escuro, ele justapõe o close de uma mão frenética dedilhando um piano com vários outros closes de instrumentos que entram em processo de fusão. Larry Clark não quer apenas filmar uma história em que o jazz é um pano de fundo e uma trilha sonora. Ele quer que a gente visualize o jazz. Enquanto imagem, enquanto método de contar histórias e, muito particularmente, enquanto manifesto.

Portanto, não se trata de uma prioridade exclusivamente formal, no sentido que toda construção visual, tal como na sequência de abertura, será feita em nome de uma improvisação estruturada da montagem de imagens, em um ritmo que, em vários momentos, se aproxima das batidas aceleradas do bebop. Há um projeto maior e uma dimensão ética diretamente implicada no modo como Larry Clark filma essa história. E ela diz respeito a quebrar com algumas linearidades narrativas com as quais a turma da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), da qual Clark fazia parte, foi ensinada a entender como “cinema”. Consigo até visualizar a reunião dessa turma nos mesmos moldes da reunião supracitada: “ou a gente se rende para agradar os brancos e ganhar alguns trocados com isso, ou a gente decide fazer as imagens que nos agradam e todo o resto é revolução”. Por uma dessas felicidades que a História vez em quando oferece, o caminho que esse grupo tomou foi o segundo.

O exercício prático disso, especificamente em Dando um rolê (tradução daora para Passing through), são algumas adesões que a concepção espaço-tempo do filme faz com a própria condição diluída do jazz, em que a evolução de um casal, por exemplo, se dá a partir de fragmentos aparentemente desconexos entre eles, com grandes elipses entre uma sequência e outra, ou quando os flashbacks (de Warmack na prisão, do seu avô lhe ensinando as premissas do viver) e as imagens documentais (as mais duras, cruas e violentas imagens possíveis da violência sistêmica contra os corpos negros) – servem não como instrumentos que explicam e dão sustentação à trama fictícia de um músico que procura se vingar da apropriação branca de sua arte. Todas essas inserções no filme funcionam como a história em si, uma em que o tempo deixa de ser da ordem de Cronos, na linha que se costura entre passado, presente e futuro, para ser da desordem de Aion, em que passado e futuro coexistem num só tempo, não mais retilíneo, mas sobretudo circular. Como uma composição de John Coltrane.

Seja com a câmera rente ao chão que corre ao lado do pneu do carro, seja com as fotos de arquivo de movimentos revolucionários em Guiné Bissau, seja no estouro proposital de cores primárias, seja no clássico preto e branco, seja em câmeras subjetivas desconcertantes (espectadores brancos levando porradas bem dadas na cara), seja no contraluz romântico que aqui é tudo menos padrão, Dando um rolê faz exercício de linguagem concentrada, numa sofisticação estética que demanda por uma outra maneira de se relacionar com as imagens, tal como o jazz exigiu que se fundasse uma nova forma de percepção da música.

Mas a beleza de um filme como esse vai muito além das decisões meio-mensagem que o diretor joga em cena. A força vital de Dando um rolê está na possibilidade da instância afetiva que sempre foi historicamente negada em qualquer tipo de representação hegemônica da mulher e do homem negro. Nas relações de avô e neto, no processo de se apaixonar entre um homem e uma mulher, nas questões de gênero que essa mesma mulher despeja sobre a cama de casal (vocês “brothers” são todos iguais) e nos pactos de sobrevivência firmados entre esses irmãos, pactos estes que expõem a complexidade e nuances disso que se chama de “sensação de pertencimento” a uma comunidade.

A energia do filme passa igualmente pelo fato de que os atores em cena, a citar especialmente Nathaniel Taylor no papel principal e Cora Lee Day numa participação especial como Oxum (uma grande amiga do avô de Warmack), estavam diretamente envolvidos com um projeto maior de cinema, o L.A. Rebellion, movimento que estava nenhum pouco disposto a fazer concessões. Todas essas qualidades – históricas, formais e afetivas – que passam por dentro e por fora dos enquadramentos fazem desse filme um evento, uma manifestação presencial da linguagem (e das batidas) que nos movem. E o simples fato de que esse é um filme praticamente inacessível ao mundo (não, vocês não vão achá-lo na internet), diz muito mais sobre as condições às quais esse cinema teve que se sujeitar para poder, apenas, existir.

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