Dorothy observa o mundo de sua janela e no recorte dessa moldura o que ela vê e ouve é um espaço que repele e nega sua subjetividade. Portanto, muitas das vezes em que Dorothy se põe diante dessa janela, seu corpo se revela cansado, o seu próprio exercício de olhar o mundo vem carregado com a vontade de desistir dele. Ainda assim, ela insiste em olhar, como se a atitude em si mesma fosse uma possibilidade de resistência. Quando Haile Gerima filma a atriz Barbara Jones na ação de se colocar observando o ambiente externo enquanto, internamente, tudo lhe sugere não desafiar o que está dado lá fora, sob a moldura retangular da janela de um apartamento na periferia de Los Angeles, há na repetição desse enquadramento uma forte marcação política sobre o próprio cinema ao qual Gerima está vinculado. Um que está ciente do quão insubordinado pode ser o simples gesto de levantar os olhos. E observar o mundo de sua própria janela. E ligar uma câmera.
Quando surgem então as primeiras imagens de Bush Mama (1979), segundo longa-metragem de Gerima, aquilo que a princípio parece ser a encenação de mais um baculejo da polícia na população negra é, na verdade, uma declaração pessoal do diretor sobre seu direito de olhar. Não sabemos, e o filme em nenhum momento revela esse dado, mas as cenas projetadas em câmera lenta na abertura do longa são da própria equipe de filmagem, incluindo aí também o diretor, sendo abordados pela polícia no meio da rua. A câmera que captura essas cenas está atrás de uma janela, escondida, discretamente dando um zoom no que vê.
Bush Mama inaugura sua existência com a presença desobediente de uma imagem que não deveria ter sido vista. E o fato de que Gerima não nos informa disso diz respeito ao peso que a elaboração fictícia da linguagem cinematográfica tem para ele. O que poderia ter sido usado como um elemento documental, e aí haveria facilmente um deslocamento do filme para o regime do real racional, é aqui aproveitado em nome da construção sensível de uma mulher negra que vai, ao longo de toda a narrativa, repetir esse gesto indisciplinado de observar o mundo. A realidade dos números, testemunhos e documentos não interessa a quem pretende nos mobilizar por aquilo que não se explica, mas se sente.
Simultâneas a esse flagrante, o que escutamos ainda na abertura do filme são sobreposições sonoras não apenas da cidade que se vê da janela – sirenes, carros, helicópteros -, mas também das vozes que a perseguem. Funcionárias e funcionários serviço de seguro social repetem perguntas, colocam questões burocráticas em tons monocórdicos: “vocês têm conta conjunta? qual seu endereço? quais os gastos da casa? que bens de consumo possuem?” A sinfonia dos entraves da sobrevivência.
Essas vozes ainda ressoam dando volume ao espaço quando a câmera então se desloca para uma caminhada na rua. Passeamos juntas observando as vitrines das lojas do bairro. Várias delas anunciam o objeto de consumo que se torna um elemento-chave para o arco de aprisionamento – e futura libertação – da personagem central: perucas. Na periferia da cidade que ficou conhecida por ter erguido o cinema de entretenimento e ilusões convenientes, as lojas de perucas demarcam o território da imagem autorizada: cabelos domesticados recobrem mentes domesticadas. Pacote dois em um do capital branco.
A dualidade entre o que Bush Mama vive nos espaços públicos e privados vai costurando o filme numa rede de conexões que, aos poucos, começam a fazer sentido tanto para ela quanto para quem a assiste. A rua é uma zona de perigo, onde um menino, negro como ela, rouba sua bolsa e onde homens negros são assassinados pela polícia que atira primeiro e sequer pergunta depois. A população e Dorothy assistem a tudo se esforçando para naturalizar e sublimar a violência. Em seu espaço privado, no entanto, alguns indícios revelam a Dorothy que é essa violência não existe no vácuo. A percepção disso se dá a partir das sequências que a colocam ao lado de T.C. (Johnny Weathers), seu companheiro, um homem negro que voltou da Guerra do Vietnã para descobrir que não apenas a América se negaria a transformá-lo num herói, como o perseguiria por ter sobrevivido.
Filmado sem qualquer linearidade narrativa, passado e presente trocam constantemente de lugar sem aviso prévio, percebemos aos poucos que as interações entre Dorothy e T.C. são a constituição nuclear de uma mudança de percepção sobre o mundo. Em determinado momento, eles estão juntos, sorrindo, na sala do apartamento onde moram, e entre os dois está apenas a janela que dá para a rua. T.C. fala que conseguiu um emprego, que vai trabalhar com computadores, que vai ganhar o suficiente para tirar ela e sua filha daquele lugar. Pouco depois, Dorothy está finalmente sorrindo enquanto observa, dessa mesma janela, T.C. indo para seu primeiro dia de emprego. Um corte seco, tal como um piscar de olhos, é o suficiente para vermos esse mesmo homem sendo levado para dentro de mais uma penitenciária.
A música composta por Onaje Kareem Kenyatta, feita especialmente para o filme, relata os últimos acontecimentos:
Another walk down this prison halls/ Mais uma caminhada pelos corredores da cadeia
I see that look on my Brothers face/ Vejo o olhar no rosto de meu irmão
A look that can not be erased/ Um olhar que não pode ser apagado
So I say to myself/ Então digo pra mim mesmo
You know it happened to me/ Cê sabe que aconteceu comigo
Há tanto no corte propositalmente abrupto de tempo, quanto nos versos de Kenyatta, uma intenção de Gerima em declarar: para que um negro seja preso, não é preciso dramaturgia, antes e depois, lógica de causa e consequência. Um homem negro nesse espaço racista é ele mesmo a própria causa de sua punição. Perceber como Gerima usa do próprio processo de montagem para deixar isso bem delimitado – algo que será reforçado no potente discurso final do filme – é entender como a forma cinema, uma vez desafiada nas suas estruturas temporais, pode ser ela mesma o motor de uma angústia que afeta diretamente quem está do outro lado da tela.
Será a partir das cartas que T.C. envia a Dorothy, da prisão, que o processo de alteração de percepção começa a se dar na protagonista. Essas cartas, bem como a presença de uma adolescente amiga de sua filha, que participa das marchas e dos debates da militância negra, que Dorothy passa a redimensionar esse espaço a que ela assiste da janela de seu apartamento. Essa mulher que anda pelas ruas muitas vezes descalça (os sapatos, assim como as perucas, domesticam seu corpo), passa então a intervir nesse espaço público, convencendo uma mãe, que pretende se jogar do alto de um prédio com seu bebê agarrado a ela, a lhe entregar a criança. É mais uma sequência que prescinde da exibição didática do antes e depois. A dor dessa jovem mulher negra que não aguenta mais viver e simultaneamente projeta o futuro interrompido de seu filho não carece de explicações ou desdobramentos. Porque essa dor, tal como ela é filmada por Gerima, precisa reter toda a potência que, no isolamento de sua manifestação, dispara ela mesma toda a História do que veio antes e do que virá em seguida.
Fala-se aqui de como a edição do filme, bem como o desenho de som que a toda hora nos esgota com as vozes burocráticas e insistentes do Estado, sugerem já esse posicionamento político de Bush Mama. Mas não há nada mais incisivo e potente nessa história do que a própria câmera do filme. Aqui, ela é um corpo orgânico tão próximo dos personagens – não necessariamente no aspecto físico, mas sobretudo afetivo –, que não existe qualquer possibilidade de nos mantermos distantes deles. Seja quando ela se coloca em cena como mais uma pessoa sentada à mesa, seja quando serve de interlocutora para o olhar frontal de T.C. e dos seus companheiros de cela, que olham diretamente para ela e, portanto, para nós, num movimento que, houvesse justiça, deveria ser registrado como um dos travellings mais emblemáticos da história do cinema.
É uma câmera que parece estar também ciente do caráter inédito das imagens que revela. Lembro que a primeira vez que ouvi falar desse filme foi numa sessão do documentário Los Angeles Plays Itself (2003), de Thom Andersen, uma longa pesquisa sobre como a cidade de Los Angeles foi moldada segundo um imaginário cinematográfico que, tantas vezes, a retirava dela mesma. No último bloco do longa, o texto de Andersen fala sobre esse movimento de realizadores negros que, enfim, filmavam uma Los Angeles que não apenas ia de encontro à constante projeção de uma cidade não-lugar, mas cuja existência era cinematograficamente negada. A esse movimento seria dado o nome de L.A. Rebellion (recomendo fortemente essa introdução de Victor Guimarães às propostas estéticas e éticas que atravessam esse conjunto de filmes).
Em Bush Mama, para além dessa cidade de esquinas e texturas reais, vemos finalmente uma mulher negra assumir o papel que, no cinema, de ontem e de hoje, é por essência do homem branco: a figura do flâneur. Neste caso, uma flâneuse. O movimento de caminhar pelas ruas, autorizado historicamente e poeticamente ao intelectual branco que a todos observa na multidão urbana (há todo um subgênero na literatura e no próprio cinema dedicado a esses personagens), ganha aqui corpo na figura de uma mãe solteira negra e pobre. A cidade, por mais ameaçadora que seja, também é dela.
Inédita é também a força contida na sequência de plano e contraplano entra a protagonista e o cartaz que foi colado na parede de sua casa. Nele, o que vemos é a fotografia de uma mãe africana segurando seu bebê no colo com um braço, enquanto sustenta uma metralhadora com outro. Dorothy encara essa mulher, que parece a encarar de volta, em closes cada vez mais fechados, cada vez mais agudos.
A câmera do filme espelha também essa troca quando se coloca como personagem vulnerável ao olhar de quem ela mesma está olhando. Se Dorothy, no desfecho brutal do filme, levanta o rosto e nos olha de frente é porque a lente de Gerima se coloca à disposição dessa personagem para que ela diga o que é preciso ser dito. Esse discurso final, naturalmente, será disparado por aquilo que se torna a sequência mais violenta de todo o filme. A elaborada construção desse encerramento merece uma atenção especial:
Do início ao final da saga de Bush Mama, ouvimos essa mulher ser perseguida pelas vozes automatizadas do funcionalismo público engessado e opressor. De modo que, quando no ato de encerramento ela se depara com a visão de sua filha ainda criança sendo estuprada por um policial branco (a história inteira das Américas em uma só sequência), a voz fantasmagórica do monstro institucional que repete sempre as mesmas perguntas – “Você concorda? Você entende? Você concorda? Você entende? Você concorda? Você entende?” – precisa ser respondida de frente.
Eis então que agora, sobre sua imagem congelada, finalmente sem peruca e espelhando a força e a dor daquele cartaz na parede, ouvimos a voz interna da própria Dorothy. Numa carta para T.C. (e para todas e todos espectadores negrxs da sala), ela diz algo mais ou menos assim: “Sei que você está na prisão e tem raiva. Mas tente falar fácil comigo, porque eu quero entender. Não é simples me explicar. Porque tem muita gente como eu que precisa lutar muito apenas para sobreviver. Mas a ideia é saber falar com todos nós. Fale esse mesmo discurso, mas fale de uma maneira tranquila pra que a gente entenda.” Tanto a atriz que a interpretava, Barbara Jones, como o diretor Haile Gerima e todas e todos realizadores envolvidxs no L.A. Rebellion tentaram, de alguma forma, com raiva e com amor, responder a Dorothy.