O estranho que nós amamos, de Sofia Coppola

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Quando Virginia Woolf escreveu em 1929 o ensaio Um teto todo seu, se fundava ali uma consciência sobre a cruel relação entre a mulher e os espaços físicos negados a ela. Como poderia uma mulher se tornar escritora, cientista, autora de qualquer tipo de conhecimento sem que se desse a ela um teto, um só que fosse, todo seu? Podia ser um quarto pequeno, um puxadinho da casa, um espaço qualquer onde ela pudesse produzir em paz. No cinema, essa relação problemática entre a mulher e os espaços por ela ocupados são desde sempre uma questão central no debate sobre a representação dessas personagens em cena.

Então quando Sofia Coppola insiste na repetição do enquadramento de uma grande casa que é vista pela câmera como uma entidade de poder, onde quem controla o que entra e o que sai dessa propriedade são sete mulheres, não se engane e não coloque confortavelmente todo peso dessas sequências em uma obsessão estética e formal da diretora, porque há um pronunciamento territorial sendo feito aí. O corpo dessa casa é uma extensão do corpo das mulheres que vivem dentro dela e, portanto, só toque nele se for convidado para isso.

O estranho que nós amamos versão 2017 é um filme sobre a tomada de poder que a mulher faz nesse espaço físico da casa e do seu próprio corpo, um corpo todo seu. Um que, particularmente nessa adaptação de Sofia, é simultaneamente uma entidade privada, com desejos próprios, e coletiva, com um senso de proteção comungado por todas. Sete mulheres, entre crianças, adolescentes e adultas, vão lidar de diferentes formas com a chegada de um homem, um soldado com uma perna machucada, a essa casa transformada em escola durante a Guerra Civil nos Estados Unidos. Há nessa premissa a possibilidade de um debate político sobre esse enfrentamento entre as mulheres do Sul retrógrado e do homem do Norte progressista, algo que, aliás, é rapidamente explorado na primeira adaptação cinematográfica do romance de Thomas Cullinan, de 1971, dirigida por Don Siegel. Mas à Sofia não interessa esse tipo de debate.

Interessa a subversão dele: o enfrentamento desse feminino atrasado e selvagem fazendo cair a máscara do masculino desenvolvido e racional. Interessa filmar as sutilezas que percorrem uma concentração de energia que oscila entre a libido e a frustração das mulheres ali reunidas, vestidos tocando corredores e escadas na contraluz do tesão. Interessa dar close no torso peludo de Colin Farrell, sendo a câmera aqui o olhar deliberadamente desejante da Nicole Kidman que passa, bem devagar, o pano molhado sobre o corpo sujo desse homem, um pano que bordeja, mas nunca toca ou mesmo desvela, o pau coberto por um lençol tão alvo e tão limpo. Interessa abrir o quadro para dar conta de todos os pactos silenciosos que se firmam quando essas mulheres se olham. Interessam, enfim, os gestos sempre à beira do precipício.

Mas a queda que de fato acontece fará desembocar a virada na narrativa entre os interesses pessoais de cada uma sobre a figura masculina e estranha da casa e os acordos coletivos que acontecem quando esse mesmo sujeito se torna violento justamente porque sente que seu corpo foi fisicamente mutilado de sua condição de macho. As mulheres de Sofia Coppola se movem no limite entre a razão e o desejo, mas todas elas são equilibristas (por motivos de sobrevivência). Ele não. Ele cai.

Tudo isso é filmado com uma consciência espacial que sobrevoa a narrativa. As brechas de sol que atravessam o espaço externo e interno da casa durante o dia e a luz de velas que dá forma aos recintos durante a noite iluminam jardins, salas e quartos com moderação e controle. Espelham mulheres moderadas e controladas ou mulheres que moderam e controlam? Uma coisa e outra, tudo ao mesmo tempo, zero contorno, passivas e ativas, as noviças verdadeiramente rebeldes. Só há uma certeza estabelecida desde o princípio dessa história: essa casa é delas. E de mais ninguém.

Muito se fala de como o filme de Don Siegel, de 1971, trazia mais camadas dramáticas e ação à história. E, de fato, trazia, talvez por uma fidelidade maior ao livro do qual ele foi adaptado, talvez por estar mais atento às possibilidades psicológicas e oníricas que esse encontro entre um grupo de mulheres reclusas e um soldado ferido trazia. Mas tudo aquilo que Sofia escolhe deixar de fora na sua versão diz respeito a uma proposta que é tudo menos exclusivamente estética – como alguns confortavelmente decidiram encaixar sua obra –, mas é sobretudo política.

E o que é deixado de fora? A implicação de que a matrona da casa, interpretada no primeiro filme por Geraldine Page, teria tido no passado um caso incestuoso com seu irmão e, portanto, era uma mulher com distúrbios mentais que transformavam seu tesão pelo soldado em algo quase doentio; a mulher negra e escrava que, em determinado momento, é usada como muleta para o discurso do soldado do Norte abolicionista; a câmera que filma uma adolescente nua enquanto ela faz sexo com esse homem “estranho”; um beijo bastante problemático entre um homem adulto e uma criança nos primeiros minutos de filme e, mais importante, uma certa inclinação para transformar esse personagem masculino no herói injustiçado por mulheres com sérios indícios de psicopatia (exemplo: o folhear das páginas de livro de anatomia que é citado, porém não mostrado no filme de Sofia, e as repetidas fusões de cenas dão ao trabalho de Siegel propriedades mais próximas do terror).

Aqui vale ressaltar que a presença e o carisma canastrão de Clint Eastwood no primeiro filme pesa bastante para que, na obra de Don Siegel, a narrativa se dobre mais a ele que a elas. A escolha de todo o elenco no filme de Sofia parece ser deliberadamente pensada para que não haja riscos que isso se repita. Colin Farrell é a representação maior do macho-objeto e Sofia o filma como tal, enquanto Nicole Kidman é a diva que tenta, mas disfarça mal sua própria condição de diva. Adicionado a isso, na seleção de duas atrizes que já haviam previamente trabalho com Sofia Coppola, o filme cresce ainda mais nas entrelinhas do roteiro: Kirsten Dunst e Elle Fanning.

Há nessa história a clássica dualidade que, por tanto tempo, pontuou os dois extremos da representação da mulher no cinema: a santa e a puta. Kirsten Dunst, a adolescente excitada de Virgens suicidas (1999) e a rainha adolescente de Maria Antonieta (2006), faz aqui a santa, no papel de uma professora de francês bela, recatada & do lar que irá se apaixonar romanticamente pelo soldado. E Elle Fanning, a criança que começava a entrar ainda ingenuamente na adolescência em Um lugar qualquer (2010), faz a puta, como a jovem que fica periguetando pela atenção desse mesmo homem com uma só intenção: sexo.

Por serem interpretadas por quem são, essas duas personagens escapam com frequência aos moldes tão bem definidos desses dois modelos de mulher. Kirsten, no cinema construído pra ela, está sempre no limite da perversão e essa energia se encontra presente na moça-pra-casar que vemos aqui. Elle continua com aquela cara de irmã mais nova e sua interpretação neste filme sabe fazer uso dessa qualidade ninfa para subvertê-la na clássica bitch que quer furar o olho da amiga. Para além disso, a santa, a quem no cinema cabia somente o espaço interno da casa, e a puta, que segundo as câmeras só podia circular no espaço externo das ruas, dividem aqui o mesmo teto e essa convivência, por si só, é explosiva tanto no primeiro quanto nesse segundo filme.

Mais uma vez em um exercício de investigação do que vem a ser isso que se convencionou chamar de “feminilidade”, a diretora faz agora um recorte sobre a existência espacial dessa feminilidade. A casa-corpo que ela filma diz respeito ao corpo-mulher e as autorizações do que pode, ou não, estar em contato com ele. Nada pode ser mais evidente que isso do que a sequência final, quando finalmente a câmera gradualmente toma distância da fachada da escola. No olhar clássico – e masculino – do cinema, esse movimento fala com frequência de casas mal-assombradas. Mas aí vem Sofia Coppola, ajusta milimetricamente todas elas diante dessa ostentosa construção de colunas jônicas, as coloca numa pose de fotografia oficial (porque a mensagem aqui tem um tom oficial), as veste de branco e tons pasteis e, com a inserção do elemento visual de uma grade que delimita os espaços do mundo delas e do mundo deles, diz que não, elas não são fantasmas. São as donas desse espaço.

7 respostas em “O estranho que nós amamos, de Sofia Coppola

  1. Carol, achei muito forte no filme o tratamento do desejo delas em relação a ele. Esse desejo matizado ora por repressão, ora por medo, ora por ódio. Uma combinação complexa do sentimento de uma mulher diante de um homem numa sociedade patriarcal. Tanto que, quando vem a amputação, penso que é ambíguo o quanto ela tinha de necessário (essas mulheres “santas” a salvarem a vida daquele homem) e o quanto tinha de vingança (de demonstração de poder, de castração mesmo do macho abusador). A violência emocional dele em relação a elas, ao tentar manipular várias ao mesmo tempo, é a contraparte desse desejo. Concordo contigo que a economia da direção da Sofia é menos estética por si só e mais uma estética política extremamente certa da síntese a ser criada para que esses sentimentos latentes latejem e essa relação entre a manipulação e o desejo se avolume diante de nós espectadoras.

    • Perfeito. Acho que rende um debate inteiro sobre o que é esse desejo, como ele se manifesta nelas e como, particularmente, esse olhar, que foi historicamente desautorizado à mulher – que deve permanecer sendo o ser desejado, sempre – passa a ser enquadrado por Sofia. Sim, a amputação tem um caráter ambíguo entre a punição e o “fazer a coisa certa”, porque você nunca sabe quais são as reais intenções dessas mulheres, e é justamente esse não saber (no filme de Don Siegel tudo leva a crer que se trata sim de uma vingança) que, pra mim, se articula com a própria essência do desejo: algo que foge ao controle e às instâncias do verdadeiro e do falso, do certo e do errado.

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