Quando Edwin Honig percebe o céu, o filme nos mostra o fundo do mar. Existe uma estrada úmida, de barro batido, entre o sentido da paisagem etérea que o personagem vê e a ideia de submersão que a montagem nos dá logo em seguida. Nesse percurso o diretor Alan Berliner tenta resignificar palavras. Pois essas palavras que passaram a vida servindo aos poemas de Edwin vão, ao longo do filme, perdendo seus pontos de cognição. Restam a elas apenas a melodia de fonemas que se encontram, tal como quando o céu encosta no oceano.
Criando música com as conexões que o objeto e sujeito do filme já não mais consegue fazer graças ao Alzheimer, Berliner fez um documentário com todas as coisas mais importantes da vida e, por isso mesmo, todas as mais negligenciadas. Primo de Segundo Grau não é apenas um filme sobre a perda da memória. Na verdade, é sobre tudo menos isso.
A ausência da memória em Edwin Honig é a presença dela. E ao falar dessa memória usando um poeta – “mestre das palavras” – que já não mais sabe quem é e, além disso, não sabe o que é ser, o diretor escreve ele próprio um poema em tributo à lembrança daquilo que constitui um ser humano. Nossa matéria de significados muito além da carne e dos ossos, dos momentos em que conseguimos estabelecer relações entre vastidões de céu e mar.
Primo de Segundo Grau é, portanto, um filme macro. Ao falar de um passado específico, aquele de Edwin, ele trata do Passado. E, mais acintosamente, do Presente. A partir de cinco anos de acompanhamento sistemático do esfacelamento da memória daquele que parece ser um pai para Berliner, o documentário nos impõe questões que se perdem na urgência do senso prático da vida. O que sobra depois do esquecimento? O Presente se basta? Sentimentos são ideias perecíveis? Saberemos amar sem a ideia do amor?
Berliner nos joga essas questões com uma justaposição de imagens cirúrgica, com uma métrica própria de quem domina completamente a arte de conectar, vejam só, memórias. O acervo de referências do diretor dança em sincronia com o carinho, afeto e respeito que ele tem pelo objeto de seu filme. Não há espaço para closes despropositais ou silêncios pincelados aqui e ali a tentar nos impor um timing de reflexão. Os closes e silêncios existem, mas todos surgem de um espaço muito próprio e digno daquele personagem.
E mesmo que Primo de Segundo Grau se mostre no fim muito maior do que aquela relação entre Berliner e Edwin, ou mesmo do que a história específica de um poeta com Mal de Alzheimer, não deixa de ser irônico que o próprio Edwin tenha sido um condecorado tradutor de poetas portugueses. Sabia ele pois do significado daquela tal palavra, esculpida em memórias, que fazemos tanta questão de reclamar exclusividade.
Recente vencedor do mais importante festival de documentários do mundo, o International Documentary Film Festival Amsterdam (IDFA), Primo de Segundo Grau não tem previsão de estrear nos cinemas. Será exibido direto na HBO americana no segundo semestre deste ano (e possivelmente na HBO da América Latina também). No É Tudo Verdade, haverá ainda uma exibição dele nesta terça à noite em São Paulo (Reserva Cultural, 22h) e, no dia 12, no Museu da República do Rio de Janeiro, às 20h.