Entrevista: Hilton Lacerda (Tatuagem)

Hilton

Tive a oportunidade de entrevistar este mês Hilton Lacerda que, no próximo dia 15 de novembro, faz sua estreia no circuito comercial brasileiro com seu primeiro trabalho de direção em ficção. Estamos falando de Tatuagem, filme que precisa ser visto, revisto e discutido. Tentando colaborar com esse debate, segue a conversa que tivemos:

Havia uma ideia inicial de em fazer um documentário sobre o Vivencial antes de pensar em Tatuagem? Procede?

Não exatamente. Eu tinha começado a ler Orgia, do Tulio Carella, e tinha chegado a falar até com Irandhir sobre como seria fazer um peça inspirada no livro. E aí numa conversa com João Silvério Trevisan, a gente era vizinho nessa época, ele me perguntou por que eu não fazia um filme sobre o Vivencial. Nessa época eu pensava eu fazer um filme com o Jomard (Muniz de Brito). E foi engraçado porque tinha um monte de histórias que eu estava construindo pro filme do Jomard que se eu nucleasse aquilo dentro dessa ideia de teatro que o Vivencial tinha, esse monte de ideias confluíam.

Essa ideia de um filme com o Jomard começou quando?

Isso foi em 2003. Agora o roteiro de Tatuagem eu comecei a escrever em 2006.

Quais os parentescos que você identificaria entre Tatuagem e o cinema nacional?

Eu tenho uma paixão bem grande por cinema brasileiro. O Amarelo Manga pra mim, por exemplo, era muito uma releitura do cinema marginal paulista, principalmente O Bandido da Luz Vermelha, mas muito mais como processo narrativo. Naturalmente, essa conexão é da minha cabeça, isso necessariamente não precisa estar impresso no filme. Fora isso você sempre fica ligado no cinema contemporâneo, tanto o brasileiro quanto o mundial. Tatuagem talvez seja a radicalização disso. Talvez dois filmes nucleassem bem essa base do Tatuagem, que é A Lira do Delírio, de Walter Lima e Sem Essa Aranha, do Rogério Sganzerla, como uma tentativa de fazer uma leitura quase teatral de um processo cinematográfico e principalmente essa coisa que Walter Lima fez muito bem em A Lira do Delírio de tentar fazer um cinema popular, que nada tem a ver com o cinema comercial, com uma liberdade muito grande nesse processo. Em volta desses dois filmes tem um monte de coisa: tem o Anjos do Arrabalde, do Carlos Reichenbach. Havia uma coisa no cinema brasileiro que me incomodava que era essa falta de diálogos, de planos de diálogos, porque eles sempre foram muito chapados. E Anjos do Arrabalde é muito poderoso em construção de diálogo e muito brasileiro nisso. Em muitos outros filmes a sensação era de que você estava vendo um simulacro de um cinema europeu.

Você acha que nesse momento o cinema brasileiro está amadurecendo esses planos de diálogos?

Acho que faz muito tempo que o cinema brasileiro não vive um momento tão interessante. Falo, claro, de um cinema que seja menos acoplado a um sistema de bilheteria. Quando você pega a quantidade de filmes que estão sendo feitos, a diversidade que eles têm e a capacidade deles em articular linguagem, o cenário é vasto. Você tem a criação do pessoal do Alumbramento do Ceará, da Teia de Minas Gerais, são tipos de cinema que apostam muito na perspectiva de experiência mas ao mesmo tempo é uma construção narrativa. Se você pega, por exemplo, o cinema feito em Pernambuco… As pessoas ficam tentando achar uma explicação, não sei o porquê, mas é um cinema muito pulsante. E é um cinema que não se prende a uma característica muito parecida uma com a outra.

No começo deste ano fiz uma matéria pra revista Monet sobre esse momento do cinema feito em Pernambuco e Camilo Cavalcante fala algo interessante, de que se existe uma característica em comum ao “cinema pernambucano” ele é a honestidade dos realizadores de se colocar muito em suas obras.

Acho que isso é bem claro. Mas tem outra coisa que vejo, e eu repito sempre isso: Pernambuco inventou uma forma de produção. De fugir do parâmetro Rio-SP que no início era extremamente desconfiado com a galera daqui (o “aqui” é Pernambuco, ainda que estejamos em uma casa na Pompeia, em São Paulo) e muitas vezes desqualificando e destratando equipe porque muita gente ainda não sabia fazer cinema. Pra esse cinema ser conquistado demorou um tempo. Afora isso, tivemos as conquistas da classe com editais e leis que respaldaram um pouco esse cinema. Me lembro que o Baile Perfumado foi ridicularizado na época, o Amarelo Manga, o governo do estado de Pernambuco deu, e eu posso estar até aumentando o valor, mas era coisa de R$ 2500 em seis parcelas. Engraçado depois é que quando o Estado entra, ele vem se atrelar ao ufanismo daquilo ter sido feito em Pernambuco. Acho que esse momento (ufanista) passou. Ainda que seja recente, creio que já foi superado. Costumo dizer que foi muito importante o Baile Perfumado ter dado certo, porque se aquela produção tivesse parado, por exemplo, talvez isso tivesse tido uma repercussão muito negativa e a coisa não tivesse andado. Mas enfim, acho que é isso, é um cinema que tem um profundo caráter pessoal, mas um pessoal muito contaminado pelas ideias do mundo.

Tatuagem se passa num período em que o regime militar ainda governava no Brasil e sua infância e adolescência foi toda durante esse período…

Eu estudava em escola pública no Recife e pra mim era muito normal cantar o Hino Nacional com a mão direita no peito esquerdo, todo dia hastear bandeira e cantar o Hino da Bandeira. Foi somente a partir de 78 que comecei a ficar mais autônomo em relação à ideia do que era a ditadura. Fui morar muito jovem em São Paulo, Bauru, e comecei a bancar minhas próprias ideias em relação ao mundo. Aos 16 anos eu já morava sozinho, então foi um processo muito rápido. E 78 é justamente o ano que se passa o filme, por isso é que é um ano tão importante pra mim. Pois era um ano de promessas, de que alguma coisa ia acontecer, uma grande transformação. Talvez o personagem de Tuca, com sua ficção científica filosófica, seja muito referente pra esse olhar de futuro.

O cinema que tem sido feito em Pernambuco nesses últimos anos é um cinema extremamente político no sentido de estar sempre problematizando relações sociais. Ao mesmo tempo, externo ao que se faz nos filmes, é um cinema que só tá existindo nesse volume de produção graças ao Funcultura. Recentemente, Eduardo Campos fez aquele jantar com alguns cineastas e nas redes sociais houve quem criticasse esse encontro como mais uma atividade eleitoreira de Eduardo. A pergunta é: como é fazer um cinema político e crítico à própria política de quem governa e ser também um realizador que precisa ser político pra manter esse incentivo ao cinema pernambucano?

Eu sempre fico pensando nisso, porque essa produção que vem de Pernambuco não é uma produção autorreferente ao estado, pelo contrário, não conheço nenhum filme que seja um publicidade turística de Pernambuco. E isso é uma coisa muito engraçado de pernambucano, que é extremamente ufanista e ao mesmo tempo muito crítico em relação ao estado.

É porque só pernambucano pode falar mal de Pernambuco.

Exatamente. Quando falo mal de Pernambuco pra minha mãe, ela diz que eu não gosto do estado, mas não é isso. Essa coisa do jantar, acho que isso foi uma bobagem, porque já tivemos outros encontros, inclusive com Marco Maciel, Jarbas Vasconcelos… não são encontros novos. Obviamente as pessoas se debruçaram sobre aquilo por causa de um momento político específico de muitas convulsões, e o comportamento do estado em relação a isso, como todo o Estado brasileiro, é patético. Então a função que a gente tem, enquanto realizadores de cinema, é tentar livrar o Estado do poder que ele pode ter, porque enquanto esse edital não for lei, vamos ficar à mercê de um governante chegar e dizer que os filmes feitos em Pernambuco não estão falando bem do estado e por isso acabar com o financiamento. Acho que a turma agora pensa em estabelecer políticas públicas de fomento ao audiovisual e não como diletantismo, mas como economia criativa possível, de formação de técnicos, coisas que movimentam economicamente o estado. De qualquer maneira, acho que o Estado não consegue se atrelar à criação de cinema que é feita lá. Até porque não é um cinema muito orgulhoso desse Estado não. Em todo caso, é a lei de incentivo mais interessante de todo o Brasil. Se no começo a gente fazia copy-paste de leis pra poder fazer uma lei nossa, acho que hoje em dia tem muita gente tentando copiar o que estamos fazendo.

Voltando à Tatuagem: é um filme que traz um personagem militar colocado dentro de um contexto totalmente distinto de um quartel e curiosamente ele surge num momento em que se discute bastante uma possível desmilitarização da polícia no Brasil. Apesar de se passar em 78, é um filme feito pra se discutir agora.

Essa percepção de que as coisas mudaram, mas na verdade não mudaram, ou que essa mudança ainda não foi absorvida foi uma preocupação do filme desde o início, por isso essa coisa de ir pro passado. É como Borges diz: o passado é ótimo porque você pode moldá-lo de alguma forma, o futuro você pode apostar, mas o presente… a dor não dá tempo de deixar você resolver o que é que dá pra fazer com aquilo. Então tudo faz parte de uma só ponte. Mas o que eu acho muito grave hoje em dia é que a gente não vive num Estado de Exceção. A exceção é o Estado. A função do Estado que seria normatizar essas relações sociais vira refém de uma violência do qual ele está sendo patrocinador. Quando você pega, por exemplo, o Rio de Janeiro, é um estado tomado todo por milícias, por uma necessidade muito alucinada de ganhar muito dinheiro com o petróleo que existe ali. Depois que foi retomado o processo democrático ninguém parou pra colocar essa ideia em jogo. Então você nunca consegue colocar a desmilitarização da polícia em pauta porque o corporativismo está com as armas na mão pra dizer não. A PM é criada pelo regime militar como instrumento de opressão, que continua a existir. Em determinado momento esse processo de repressão diminuiu para os intelectuais, mas isso continuou nas classes periféricas.

Nota-se que o personagem de Clecinho está sempre com um livro na mão ou mesmo citando alguma obra. É importante pra o personagem ter propriedade crítica sobre o teatro que ele estava fazendo?

O Vivencial tem uma importância incrível hoje em dia dentro da história do teatro pernambucano, mas na época ele parecia somente uma esculhambação. Só que as discussões que ele tinha era de que quando eles estavam fazendo aquilo, o deboche era parte de uma prática cultural. Não era uma prática de ignorância, eles estavam tomando uma posição. Isso era muito claro pra eles e pra mim hoje quando faço essa releitura. Então o personagem do Irandhir é um cara que lê e sabe sobre o que está fazendo.

Naturalmente você já conhecia bem o trabalho de Irandhir. Mas acredito que uma coisa é escrever o roteiro de filmes em que ele está e outra é filmá-lo, observar como ele reage enquanto você está ali atrás da câmera. O que você tirou dessa experiência?

A gente sempre teve uma proximidade muito grande. Quando escrevi o roteiro de Tatuagem eu pensava em Irandhir como Clécio. Não porque eu já tinha ele como certo pro elenco, mas porque às vezes gosto de dar rosto pros personagens e o rosto de Clécio era o de Irandhir na minha cabeça. Quando acabei de escrever fiz o convite pra ele, fiquei muito envaidecido quando ele aceitou. Acho que Irandhir é um dos maiores atores brasileiros de cinema. Minha primeira experiência mais próxima com ele foi quando ele fez Maninho em Baixio das Bestas e ali eu vi um cara com uma interpretação incrível, uma disciplina absurda e uma pessoa muito generosa. Durante o processo de construção de Tatuagem foi muito importante as discussões que a gente teve. Quando você observa que o personagem dele está sempre lendo, isso foi uma coisa que a gente discutiu antes porque é um personagem workaholic, ele está sempre trabalhando, sempre lendo algo. E isso é muito também o próprio Irandhir. O que ele te traz de informação e delicadeza preenche muita coisa quando você vai dirigir.

Houve um trabalho de preparação de elenco antes das filmagens e a trupe do Chão de Estrelas passou um tempo se conhecendo e criando dinâmicas numa casa em Olinda. Quão importante foi essa preparação no resultado final?

A ideia era dar esse clima de cumplicidade e proximidade que os personagens têm. E é outra coisa você acionar a inteligência dos atores, fazer eles compreenderem por que estão ali e o que estão fazendo. Aliás, Irandhir tinha muito isso, porque como ele era o líder da trupe, ele também virou um pouco o líder dessa galera. E durante seis semanas antes das filmagens, eles iam montando os espetáculos que estavam no roteiro. Cada semana eles traziam dois espetáculos novos que tinham feito. Essa afinação foi essencial.

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