Nada de Mau Pode Acontecer, de Katrin Gebbe

Tore

:: Filme na programação da Mostra SP ::

No título original em alemão, o nome do filme é o nome do personagem principal: Tore Tanzt. Os americanos rebatizaram a história como Nothing Bad can Happen, traduzido ao pé da letra aqui no Brasil. As horas se passaram depois da sessão e vejo que há um erro bobo, porém determinante, nessa adaptação do título. Troquem Nada de Mau Pode Acontecer por O Mal Pode (Não) Acontecer e a ideia do trabalho de Katrin Gebbe começa a fazer real sentido. Não é do Mau, mas do Mal de que estamos falando. E em Tore Tanzt ele não existe para poder existir. Entendam, não é a presença do Bem, mas a ausência do Mal no protagonista o elemento perturbador desse filme.

O personagem em questão é um jovem que comunga de um, digamos, sub-plot cristão com o nome de Jesus Freaks. Não tem família, casa ou passado. Tem apenas uma mochila de roupas, epilepsia e a certeza absoluta de que Jesus está com ele e nada o faltará. Sua crença na bondade dos outros parece ser inabalável. Mas muito mais do que isso, sua certeza de carregar ele próprio essa bondade é inflexível. Em determinado momento, o jovem cruza com uma família. Como retribuição a um favor “celestial” de Tore (Julius Feldmeier), Benno (Sascha Alexander Gersak), o pai da família, convida o rapaz para comer da sua comida, dormir sob o seu teto. Típica narrativa bíblica.

Continuar lendo

Cinco dicas quase zen de como vivenciar a Mostra SP

BANNER-MOSTRA-SP-2013

A 37ª edição da Mostra de Cinema de São Paulo começa nesta sexta-feira (18), com a exibição de 377 filmes de todos os cantos do planeta. Com duas semanas para dar conta de alguma parte dessa sorte de títulos, há quem se empenhe em maratonas sem fim de filmes. Concordo que são raras as oportunidades de ver na tela grande obras que dificilmente chegariam às salas não fosse por iniciativas como essa. Nesse tópico, o Filmes do Chico fez um excelente “Guia sobrevivência na Mostra de Cinema de São Paulo”. Recomendo ler, existem questões práticas essenciais ali.

Mas queria acrescentar algumas outras “dicas”, se me permitem:

1) Cinema é hipnose, imersão, deslumbramento. E alguns filmes não raramente caminham com a gente muitas horas depois dos créditos finais subirem. Em certos momentos, é preciso saber reconhecer que não queremos largar a mão do que acabamos de assistir e, quase que promiscuamente, nos render aos encantos de outras histórias. Portanto, mesmo se você tiver com uma agenda de cinco filmes no dia, saiba identificar quando um deles te demanda uma pausa. A gente já vive correndo o dia inteiro com prazos e metas e tabelas e deadlines. Não precisa ser assim também com o cinema.

Continuar lendo

O Jardineiro, de Mohsen Makhmalbaf

Jardineiro

:: Filme na programação da Mostra SP ::

Diálogo dos primeiros minutos de O Jardineiro:
Mohsen Makhmalbaf, o pai: “Cinema é extensão dos nossos olhos, não das nossas lentes”.
Maysam Makhmalbaf, o filho: “Se só a percepção é importante, pra que fazer filmes?”

Para um documentário que se pretende questionar e entender por que as pessoas adotam uma religião como norte moral, é bem sintomático que Makhmalbaf, alguém que sempre colocou a própria arte do cinema em xeque, conteste de cara seu ofício de cineasta. De tal forma que os conflitos ideológicos entre ele o filho nunca são apenas sobre cinema ou apenas sobre religião. A diferença do olhar de cada um diante do material humano que se coloca diante deles é a grande questão. E que por isso devoção pode ser algo tão relativo quanto um recorte do olhar.

Continuar lendo

Avanti Popolo, de Michael Wahrmann

Avanti Popolo

:: Filme na programação da Mostra SP ::

Avanti Popolo é um filme sobre o tempo. Que parou, que se arrasta, que acelera, que se pudesse voltar atrás… O tempo que a gente não queria que tivesse passado. Tampouco fosse presente. Mas ali está, sentado no meio da sala, o tempo.

Os dois personagens que contracenam com ele representam a memória. Um deles, o pai, nega luz ao tempo e mantém as janelas fechadas. É a memória imobilizada. Já o outro, o filho, não se importa em iluminar esse mesmo tempo e tentar de alguma forma tirar dele o pó com que seu pai fez questão de vesti-lo. Paradoxalmente, é um personagem desleixado com seu próprio tempo, sem perspectiva de futuro. É a memória em tentativa de construção.

Continuar lendo

Entrevista: Marjane Satrapi (Gangue dos Jotas)

gang-of-the-jotas

Recentemente, graças a uma matéria que fiz pra Harper’s Bazaar, tive a excelente oportunidade de conversar com a diretora Marjane Satrapi, pessoa que eu admiro desde que virei a primeira página de Persépolis, história em quadrinhos autobiográfica pela qual ela ficou famosa no mundo inteiro. Essa premiada HQ se transformou em uma animação dirigida pela própria Marjane em 2007 e chegou a concorrer ao Oscar. Em 2011, uma segunda HQ, também com pegada autobiográfica, chegou aos cinemas: Frango com Ameixas (exibido na Mostra SP daquele mesmo ano). Agora, Marjane volta à programação da Mostra com um filme liberto de tudo: de ser uma adaptação e, principalmente, de ser preso àquelas tabelas rígidas de um calendário de filmagens. A Gangue dos Jotas é uma comédia sobre uma mulher que consegue cooptar dois jogadores de badminton para perseguir uma suposta gangue de mafiosos conhecidos como Os Jotas: José, Juan, Javier, Júlio, Jorge e Jesus. Segundo Marjane, foi filmado quase que completamente no improviso. Abaixo, transcrevo a entrevista completa com alguém que não cansa de rir de si mesma e, quando possível, dos outros.

Continuar lendo

Tatuagem, de Hilton Lacerda

tatuagem

:: Filme na programação do Festival do Rio ::
:: Filme na programação do Janela de Cinema ::

Entrevista com Hilton Lacerda
Entrevista com Irandhir Santos

Gente que pede a benção, que conta números, que paga as contas, que quer perder peso, que obedece ordens, que espera o sinal abrir e quando o sinal abre a pessoa fica lá, parada, pensando na benção, nos números, nas contas, no peso e nas ordens. E aí vem Hilton Lacerda com sua Tatuagem buzinar desordem em versos musicados nos nossos ouvidos. Se o sinal está verde, é hora de sair do carro e deixar as máquinas em ponto morto pra que você não fique morto também.

Tatuagem é um filme que tem tudo a ver com o que vivemos (ou apenas vemos) hoje nas ruas do país e do mundo inteiro. É alguém te puxando o travesseiro onde antes te cabia o minifúndio do grito. Sem o escudo do abafo, sua voz ecoa e, como diria Caetano, ganha liberdade na amplidão.

Abertamente inspirado nas experiências do Vivencial, grupo de teatro “das Olinda” dos anos 70, o primeiro longa dirigido por Hilton (roteirista maior da filmografia suburbana de Cláudio Assis) joga com as pequenas guerras da humanidade em favor da paz. Sem julgar, ele coloca no mesmo campo, e às vezes no mesmo corpo, a TFP e o desbunde, a mulher e o homem, a Lua e o Sol, o terço e a purpurina. Porque, e o diretor/roteirista parece entender isso muito bem, todo dia só começa quando bate a meia-noite.

Continuar lendo