O dia que te conheci, de André Novais

Zeca e Luisa pouco se preocupam com isso, mas em linguagem de cinema, sempre houve uma disputa em torno das produções de sentido dos planos-sequência. Zeca e Luisa estão indo tomar uma cerveja. Mas nós que assistimos aos dois se movendo na cidade à noite sem que qualquer corte interrompa essa caminhada, estamos diante de um desses momentos em que a linguagem cinematográfica impõe suas encruzilhadas de controle do tempo-espaço a partir da suspensão dessas duas categorias – tempo e espaço – como uma forma de nos conduzir à indescritível sensação de gravidade zero em qualquer princípio, ainda que tímido, de apaixonamento.

Primeiro porque a sequência em questão é o ponto em que o passado e o futuro dos personagens se encontram no marco fundador de qualquer relacionamento – o nervosismo excitante do encontro com o desconhecido e o desejo silencioso de conhecê-lo um pouco mais. Mas também porque ela definitivamente rompe com a ideia do plano-sequência a serviço de uma estrutura realista do cinema moderno, para se aliar a algo que o cinema contemporâneo investe já há algum tempo, que é usar essa estratégia como um recurso do artifício, do maravilhoso, da violação com os próprios códigos da narratividade.

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Temporada, de André Novais

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Juliana tem medo de altura. Há outros medos também: de escorpião, do salário não cair e, sobretudo, medo do abandono. A temida derrelição, como diria a poeta Hilda Hilst. Mas aqui é preciso dizer que ela não gosta de altura. Porque na cena em que isso se revela, há ali ao lado um rapaz desconhecido que coloca suas duas mãos firmes na escada que dá pra laje da casa e diz: “Pode ir, sô. Eu seguro.” A sequência que começa no momento em que Juliana respira fundo e sobe a escada é somente a primeira de uma série de outras em que se manifestam os dois estatutos fundamentais de Temporada: contemplação e presença. Leia-se: a possibilidade de olhar para o mundo sob outra perspectiva que se dá partir do contato humano, da confiança nesse contato. Juliana sobe e lá do topo da laje ela e esse moço podem observar a cidade. “Vista bonita”, ela diz. Eles olham. E nós olhamos eles olharem.

Pausa na imagem. Esses corpos que olham, esse enquadramento de pessoas em estado de contemplação, a quem costuma pertencer essa cena? Essa paisagem olhada, quem a define enquanto paisagem? A narrativa da vizinhança gentil, atenciosa e cuidadosa é tradicionalmente oferecida – ou tradicionalmente negada – a quem?

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