Que bom te ver viva, de Lúcia Murat

Esse texto foi publicado originalmente no livro Documentário Brasileiro – 100 filmes essenciais, a Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), que pode ser comprado aqui.

O olhar e o não olhar para a câmera, as curvas e as retas das falas, a narração que tenta se manter impessoal como um mecanismo de proteção já ensinado ao corpo, simultânea à narração que, em algum momento, não sustenta mais essa fortaleza e desaba em um choro que parecia estar há muito tempo cindindo a parede da represa. O enquadramento escolhido para esses relatos está sempre fechado nos rostos das mulheres entrevistadas, mas não há nada, em nenhum dos depoimentos e na maneira como eles são registrados que indique haver ali uma intenção de tornar a experiência da tortura num relato sentimentalista cristalizado em um tempo que passou, mas foi lavado e está, finalmente, “limpo”. Nada é passado em Que bom te ver viva (1989), de Lúcia Murat. Tudo é presente, tudo atravessa. A memória não é um objeto que possa ser guardado e fechado em livros de História. A memória é um corpo vivo que se atualiza seja pelo direito de poder se lembrar, seja pela necessidade de se fabular sobre ela. E o filme de Murat usa ambos os recursos.

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Terrorismo narrativo para bagunçar a matemática da mito máquina*

*Esse texto foi publicado originalmente no catálogo da 2ª edição da Mostra de Cinema Árabe Feminino. Originalmente, ele foi editado em duas colunas paralelas, numa tentativa de simular a estrutura díptica do filme In Vitro. Para lê-lo em sua configuração original, acessem o catálogo aqui.

Possessão é impossibilidade (e, portanto, sempre-já um mito), por Kênia Freitas

É possível possuir a lua? Uma árvore? Uma paisagem? (De volta) Um território expropriado? Um sonho? Um trauma? Memórias coletivas e individuais de uma nação? Em A Space Exodus (Um Êxodo Espacial, Larissa Sansour, 2009), uma bandeira palestina é cravada na lua. Mas quem possui quem quando o filme reencena farsescamente o gesto colonizador cosmológico de Neil Armstrong?
Em Nation Estate (Patrimônio nacional, Larissa Sansour, 2012), é um edifício corporativo que possui toda uma nação ou toda uma nação que possui um edifício corporativo? A reencenação nesse caso se dá na apresentação do território (já despossuído) da Palestina como artifício do biocontrole da “alta vida”. A comida sintética e a paisagem falsa como marcadores da mitologia fundante da geopolítica contemporânea: a soberania do estado nação.
Projetos de possessão que estão de partida fracassados (na ficção fílmica e no mundo). Aos desejos de possuir, as imagens e sons que Sansour cria devolvem deriva absoluta, sem território e sem referências (a palestinauta solta no espaço sideral) e um não-lugar (o elevador, o apartamento, a entrada do edifício-nação esvaziados de qualquer pertença).
“Jerusalém, nós temos um problema”, sem resposta possível.
E uma árvore cresce na terra, uma criança cresce na barriga. Apesar de, ou por causa da, despossessão.

Não negociar o páthos, por Carol Almeida

A Space Odissey. A Space Exodus. A diferença entre a Odisseia e o Êxodo em suas tramas originais nas mitologias greco-romana e judaico-cristã é que a primeira narra o movimento de retorno do herói à sua terra, enquanto o segundo narra o heroísmo de um retorno fictício, pois que a terra para onde se retorna é uma promessa, e não um lugar de onde se partiu. O páthos dos filmes de Larissa Sansour está concentrado na intensidade de uma irmã pária dessas duas narrativas: o Exílio.
Quando o exílio é “congênito”, qual o movimento a ser feito dentro dos filmes? O de retorno a uma terra de onde se partiu? O de saída a uma terra prometida? Nenhum deles. O exílio é o eterno não-lugar, e o não-lugar, para o povo palestino, é uma condição imposta que termina entrando nas veias, produzindo um corpo suspenso no espaço e no tempo: não se consegue voltar, e não se consegue sair.
Se nos dois primeiros filmes da artista o páthos do exílio é manifesto por duas mulheres que se inserem em um espaço amorfo (a Lua de Space Exodus, o edifício corporativo de Nation Estate), nos dois filmes seguintes (In the Future They Ate from the Finest Porcelain e In Vitro) essas mulheres se colocam em um território povoado por uma memória simbólica, carregada de figuras humanas e não-humanas que condensam uma contra-narrativa palestina.
De todas essas figuras, uma chama atenção em ambos os filmes: o círculo escuro. Trata-se de um globo ou de um buraco? Espaço já preenchido ou ainda passível de preenchimento? Seria a própria figuração da Lua, o satélite que se projeta como ilha utópica? Há aí um outro monólito que inaugura uma nova sinfonia de Assim falou Zaratustra.

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Zona de Interesse, de Jonathan Glazer

“Pois irrecuperável é cada imagem do presente que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela.” Walter Benjamin

  1. Algumas imagens têm a voltagem de se abrirem para frente e para trás no tempo. Talvez sejam elas as pedras que Exu atira. Então, primeiro a câmera filma um corredor frio em diagonal onde o comandante Rudolf Höss parece vomitar algo que lhe consome o corpo. Um corte e vemos o contraplano desse mesmo espaço, algo (os jogos de plano e contraplano) que o filme até então elaborou exaustivamente para produzir a espacialidade dos espaços domésticos. No contraplano, já com o corpo erguido, Höss subitamente tem a consciência de estar sendo visto. Ele nos olha. Nós, a sala de cinema: o buraco escuro e submerso da História. A imagem para frente e para trás se abre assim como uma folha. Porque é preciso ter em mente que mesmo quando os filmes são de época, a época em que eles chegam ao nosso olhar é sempre a nossa. Portanto, é inevitavelmente para o presente aquilo que visamos, ainda que artificialmente sejamos transportados para o passado diegético da história. Em Zona de Interesse, de Jonathan Glazer, o gesto de romper com esse artifício de imersão num tempo outro é central ao empreendimento do filme. Höss nos olha, nós, o presente da História. E o que nos é dado a ver a partir dessa fratura temporal é o Museu do Holocausto. Hoje.
  2. No Museu do Holocausto, hoje, o filme revela um ritual de faxina. Se varre o chão, se limpa os vidros, se aspira o pó. A História precisa ser limpa ou passada a limpo? Ou, ainda mais contundente àquilo que o filme propõe: como se higieniza o horror?
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