O mundo tal qual ele é percebido na Times Square. Aquele encontro de várias esquinas e cruzamentos saturados de publicidades em telas gigantes, luzes coléricas e sons sobrepostos no ponto mais visitado da cidade de Nova York. Uma constante injeção de estímulos que, na soma de tudo, nos excitam apenas para nos adormecer. Na vitamina colorida de sentidos, se extrai nossa sensibilidade de reter algum conteúdo. E ficamos anestesiados comendo essa pasta açucarada do hiper-real, do hiper-veloz, do hiper-mega-blaster-super nada. Tudo isso para dizer que Birdman não apenas se passa nas cercanias de Times Square, como é, por essência de todas as suas ausências, um filme Times Square. Leia-se: histérico, vazio e prepotente.
Filmado inteiro como se fosse um só plano-sequência, com a steady-cam perseguindo freneticamente os personagens entre corredores, palco e a vizinhança próxima de um teatro da Broadway, Birdman se pretende ser um filme a discutir o momento contemporâneo da indústria de cinema em Hollywood, onde super-heróis esmagam, com seus super-poderes CGI*, qualquer possibilidade de autoria. No entanto, vaidoso que é com os malabarismos que faz em seus filmes (vide as costuras alinhavadas de personagens em Amores Perros e Babel**), o diretor Alejandro González Iñárritu termina por criar apenas mais um trabalho igualmente absorto em seus efeitos plásticos e, em lugar de colocá-los na berlinda, os põem num pedestal.
O protagonista em questão é um ator que, décadas atrás, ficou conhecido como a estrela de uma poderosa franquia de super-herói e hoje vive às sombras desse sucesso datado enquanto tenta, para resgatar sua autoridade de ator, adaptar e estrelar uma peça de teatro. O personagem se chama Riggan, mas se você o chamar de Michael Keaton dá na mesma. Keaton, o ex-Batman de Tim Burton, interpreta ele próprio, o que vem sendo considerado lá fora como a grande “sacada” do filme. E é isso, Iñárritu faz um filme de pequenas “sacadas” e frases de efeito vendidas na embalagem de algo que pretensamente coloca em embate a legitimidade do ator do palco versus o ator do chroma key. É como se retrocedêssemos umas oito décadas rumo anos de ouro da Escola de Frankfurt e suas ideias sobre a “alta” e a “baixa cultura”.
Existe até uma personagem, ela própria um artigo de museu, que exemplifica isso didaticamente ao espectador distraído (porque na suposição de quem é seu público Iñarritu não difere de Michael Bay). Uma famosa crítica de teatro, dessas que ainda seria capaz de alavancar ou destruir uma peça, olha para um Riggan/Keaton emocionalmente destruído na mesa de bar e dispara: “você não é ator, é celebridade”. Não há choque de ideias nessa frase, não se questiona o papel do artista enquanto celebridade e da celebridade enquanto artista. Birdman faz questão de trabalhar com a eliminação de uma condição pela existência da outra.
E faz isso se gabando de, uma vez que supostamente questiona o cenário blockbuster do cinema, elimina a possibilidade de ser ele próprio mais um blockbuster explosivo. Usa então o disfarce (de super-filme?) das cenas verborrágicas, cheias de jograis, em que o protagonista discute com sua filha que acaba de voltar de uma rehab (Emma Stone), uma atriz insegura em estrear na Broadway (Naomi Watts), seu agente neurótico atrás de mídia e publicidade (Zach Galifianakis), sua coadjuvante-amante instável (Andrea Riseboroug), um outro ator autocentrado em seu ego inflado (Edward Norton) e, pior, o fantasma do próprio Birdman a falar em voz sintética sobre como Riggan/Keaton pode tudo. Fosse um cartum, esse desfile de personagens bidimensionais renderia boas piadas. À exceção da cena inicial, quando vemos Keaton/Riggan levitar em seu camarim, não há respiração no filme para discutir a natureza de seus anti-heróis que não seja via flashs de sabedoria que eles espirram em cena – e as máximas proferidas pelo alter-ego do protagonista, vestido de pássaro, só ajudam a piorar esse estado de constante de “lição de moral” que o filme carrega.
Faz todo sentido que a crítica de massa americana esteja louvando essa história como a epítome dos conflitos autorais da indústria de cinema que, desde os anos 70 da Nova Hollywood***, não produz um coletivo de longas realmente substancial. Nada mais coerente que um filme oco para refletir o deserto de conflitos que existe hoje entre essas produções e seus espectadores.
Ou ainda, usando as palavras muito bem colocadas do crítico e curador Cleber Eduardo, no texto recente “Qual o lugar do cinema de autor?”: “Vivemos um tempo de concentrações meia fase, de cognições em modo avião e de atenção sleep mode, com narrativas cinetelevisivas ou prototelevisivas adequadas a essa sensibilidade multiconectada simultaneamente em muitas coisas, sem estar inteiro em nenhuma delas, como se o olhar e a mente fossem agora trabalhos de aplicativos. É para essa média de espectador que se dirigem cada vez mais os filmes”. Birdman, o filme-aplicativo, filme-Times Square, é um representante bem posudo desse tempo.
*Computer Generated Imagery (efeitos especiais criados em softwares alquimistas)
**A propósito da escola de filmes Robert Altman(iana) que costuram a vida de personagens tão distintos em seus próprios mundos, ver A Última Noite (último filme do mesmo Altman) para entender que debater a crise de uma indústria cultural, nesse caso o rádio, requer mais sutileza e menos truque de câmera.
***Quem estiver em São Paulo, Brasília ou Rio, vejam a mostra que o CCBB organizou com filmes da Nova Hollywood
amiga escreve sobre Gone Girl?
Assim que assistir ao filme, escrevo sobre ele ;)