Do que é eterno vivem as pessoas, a se disfarçarem diariamente dentro de um tempo contínuo sem fim ou, na melhor das possibilidades, de um fim remoto, para além do campo de visão. Não é assim no Sertão. Ou, ao menos, não era. No momento em que se situa o primeiro longa-metragem de Camilo Cavalcante, o Sertão significava, ele próprio, o desfecho da vida. Como então se propor contar a A História da Eternidade, seja ela objeto (a história sobre ela) ou sujeito (a história contada por ela) da narração, num lugar onde a morte iminente e latejante é o código comum entre o homem e a paisagem? Pela poética da resistência, nos mostra Camilo.
Sua eternidade se inscreve no registro da luta diária do homem contra a foice do destino. A guerra, ela sim, é infinita. O combate e a negação do que é dado e carimbado só dispõe de uma arma, o amor. Não aquele amor pueril e virtuoso que a todos salva e redime. Na natureza selvagem da amplidão exuberante e, ao mesmo tempo, opressora do Sertão, o amor opera no sistema do inebriamento da fé, moldado tanto pela urgência de sobreviver quanto pela impulsão do desejo. Sendo assim, ele pode aparecer nas formas mais diversas e não convencionais possíveis. O que o filme de Camilo faz é empoderar todos esses amores e desejos sem as vendas do moralismo, numa fábula onde os vários arquétipos sertanejos se diluem na liquidez invisível, porém presente, do homem árido.
A cena inicial (ver sequência abaixo) se torna um bem versado prólogo de como, nesse Sertão de nossa memória, todo começo nasce diante da imperiosidade do fim. Em primeiro plano, no canto esquerdo da tela, vemos um pássaro tombar, abatido pelo estilingue de um menino que, nesse momento, nos parece um gigante, num jogo de perspectiva que o diretor usa ao colocar ao fundo e centro da cena uma árvore esturricada, cujos galhos secos fazem sombra a um sanfoneiro. O menino colossal que segura sua caça logo se afasta da câmera em direção à árvore, onde ele se torna, assim como todos naquele lugar, um ser quase ínfimo em relação à natureza ao redor. Rente a eles, vemos lentamente passar um cortejo fúnebre de um “anjinho”, como se chamavam as vítimas da mortalidade infantil nesse ambiente desassistido. Na procissão, as pessoas entoam em coro a Oração de São Francisco, uma canção a dizer que onde houver ódio, que se leve o amor. Mas como levá-lo para esse entorno inóspito onde meninos caçadores gigantes facilmente se tornam pequenas presas sepultadas? A guerra franciscana em nome do amor e da ternura virá de dentro pra fora.
A partir da história de três mulheres de gerações distintas, em três capítulos batizados de Pé de galinha, Pé de bode e Pé de urubu – a lembrar que o pé representa o resto de carne a que tem acesso a população pobre – Camilo Cavalcante transforma o microcosmo de uma comunidade no Sertão em um conto universal sobre as batalhas da resistência. E faz isso, tal como já fez em vários de seus curtas-metragens, a partir de elementos figurativos, como a menina (Débora Ingrid) que toma banho de água e sal fingindo estar diante do mar que ela nunca viu, a mulher (Marcélia Cartaxo) que após perder sua criança fecha a porta da casa tentando morrer ela mesma para a vida lá fora e a senhora (Zezita Matos) que, no reencontro com o neto que foi morar em São Paulo, refaz com ele a clássica imagem de Pietà, resgatando nessa figura uma maternidade que, mesmo perdida, é tão idealizada quanto sexualizada. Todas elas vão tentar sublimar seus respectivos sufocamentos a partir do amor e do tesão, da menina pelo tio, da mulher pelo sanfoneiro cego e da senhora pelo neto perdido.
As figuras masculinas do filme são, por sua vez, o pêndulo entre o amor e a fúria. Na mesma medida em que o tio artista da menina, em mais uma dessas interpretações de tirar o fôlego de Irandhir Santos, e o sanfoneiro (Leonardo França) simbolizam a afetuosidade, o pai da menina (Claudio Jaborandy) e o neto da senhora (Maxwell Nascimento) carregam as marcas da violência, seja ela interna ou externa aos seus corpos. Todo esse elenco entrega ao filme uma verdade que só pode ser conquistada a partir de um trabalho de direção muito cuidadoso e carinhoso com os atores. Aliás, há uma sensação de constante afago nessa história, como se mesmo diante da brutalidade aparente do lugar, o filme tentasse imprimir o tom de uma natureza essencialmente boa tanto do homem quanto da paisagem que ele habita.
E com sucesso, ele consegue esse feito. A fotografia larga em cinemascope muito bem lapidada por Beto Martins e a trilha sonora de Zbigniew Preisner, o compositor polonês responsável pelo sóbrio desalento nos filmes de Krzysztof Kieślowski, preenchem a sala de cinema em um abraço. A câmera sempre fixa no tripé, nos trilhos ou na grua, reproduz a sensação de permanência e solidez da narrativa e alarga nosso olhar em enquadramentos com frequência abertos, onde os personagens se inserem dentro de um contexto maior, a inegável presença do Sertão ao lado, dentro.
Impossível não mencionar o peso dessa paisagem para a própria história do cinema brasileiro. O fato é que agora, o Sertão não mais precisa ser lido na chave de uma crise social como acontecia no Cinema Novo, ou tratado como um cenário alheio à sua própria construção histórica como em alguns filmes mais recentes. Camilo Cavalcante não escolhe essa paisagem às cegas. Mas em lugar de usá-la ora como uma personagem política, ora como um mero fundo de cena, ele a escolhe por todas suas qualidades de conflito entre o que perece e o que permanece. Estão nos desertos as melhores alegorias da abundância, da eternidade. O mar distante e a chuva tão esperada não são apenas os sintomas da escassez social, mas espelham também a desejada umidade do sexo, de onde a vida recomeça e brota.