Dois dos mais famosos poemas brasileiros falam sobre os caminhos imaginados de quem quer partir e de quem, tendo partido, deseja a todo custo voltar. Manuel Bandeira projetava seu exílio numa Pasárgada idílica onde seria, sobretudo, amado. Gonçalves Dias, por sua vez, clama à uma deidade que sua morte não venha antes que ele possa pisar novamente na terra das palmeiras onde canta o sabiá. Sair ou voltar de onde se nasce, seja para dentro ou fora deste país, é um tema que persegue nossa consciência nacional. Faz parte de nosso capital cultural a sensação de estar simultaneamente arraigado e deslocado de sua terra. Transitamos entre.
É esse o lugar do novo filme de Karim Ainouz. Aqui, ele faz do meio do caminho o único caminho possível. Não estranhamente, essa história começa e se encerra com longos percursos de homens em cima de motos. Estamos diante da ausência de pessoas que parecem nunca saber exatamente onde estão porque o trajeto é um fim em si mesmo. Mas essa ausência, como diria outro poeta brasileiro, Drummond, não é falta. É um estar. Praia do Futuro é a presença latente do vácuo. Tudo que estar por vir é, na verdade, aquilo que já foi embora. O futuro de Karim é um ensaio sobre esse ato de esvaziar e a possibilidade de que, assim, tudo se preencha novamente. Tal como um mar que, na Alemanha, se seca em algum momento do dia. A água vai voltar, e o mar se refazer. Quanto aos homens, não necessariamente eles concluem esse ciclo.
O contexto do local de onde parte essa história não deixa de ser a linha, aparentemente extra-filme, que sublinha esse sentido. Um amigo de Fortaleza, “exilado” em São Paulo, me conta de toda a carga simbólica que a Praia do Futuro tem em sua cidade. Ele fala que o lugar virou um grande museu de promessas. Próxima ao porto da cidade, essa região representa hoje um projeto urbano que nunca conseguiu vingar, pois a salinidade do mar não permitiu a construção de prédios por perto (e esse texto é dito no filme). Há uma melancolia própria nessa paisagem de um futuro que, de fato, nunca chegou.
Com esse tom fortemente biográfico e, portanto, corajoso – cearense de Fortaleza, o próprio diretor mora hoje em Berlim – Praia do Futuro, o filme, é dividido em três capítulos: Abraço do Afogado, Um Herói Partido ao Meio e Um Fantasma que Fala Alemão. No primeiro desses três capítulos já fica dada a relação de dependência entre partidas e chegadas. É porque um homem morre no mar que um outro surge dele. Donato (Wagner Moura), um salva-vidas que trabalha na Praia do Futuro, onde o mar é sabidamente traiçoeiro, resgata o alemão Konrad (Clemens Shick) de um afogamento. O melhor amigo desse desavisado turista não tem a mesma sorte. Donato e Konrad vão se agarrar um ao outro porque precisam, ambos, se salvar.
Daí em diante o que roteiro traz são três personagens que falam línguas distintas. Donato quer fugir dali. Konrad quer voltar pra casa. E Ayrton é uma criança que vê Donato, seu irmão mais velho, como um herói de desenho animado. Não sabe Ayrton que esse herói, como prenuncia o título do segundo capítulo, está partido, e o “meio” é a sua única possibilidade. A Fortaleza solar da luz que ilumina a sala de cinema logo dá lugar ao céu úmido e frio de Berlim, pra onde Donato vai e pra onde Konrad volta. Sem a instabilidade do mar que lhe servia de casa, Donato tenta se adaptar à realidade de um horizonte que não se move.
Mas seu lugar agora não é exatamente Berlim, está entre (sempre “entre”) qualquer cidade longe de Fortaleza e o próprio Konrad. Fugir de algo para estar com alguém pressupõe sempre desejos que não dizem respeito nem ao lugar, nem à pessoa onde se chega. É sempre de onde se sai. Particularmente quando se trata de um casal gay, com todo o contexto de afastamento social que ser gay implica, em maior ou menor grau. Sem esse elemento seria impossível existir esse filme. O exílio aqui não é uma fuga afetiva, é o remendo de uma condição afetiva.
Isso se torna ainda mais evidente quando, no terceiro ato, ressurge o personagem de Ayrton, agora mais velho, interpretado por Jesuíta Barbosa, um ator que merece cada vez mais um (dois, três…) parágrafo próprio. Homem que, ao contrário do irmão, não é da água, mas da terra, é ele quem vai dar nome e solidez à melancolia líquida de Donato. E não tem Wagner Moura que não se redima diante dos olhos cheios de raiva e desilusão da criança adulta que Jesuíta constrói. Abandonado, ele está em Berlim para colher seus impostos. Com um ator menos talentoso, esse era um personagem que facilmente poderia cair na armadilha do rebelde desgovernado. Mas Jesuíta contém toda a energia dentro dele.
Conhecido por ter filmado personagens de força feminina tão domadoras, Karim faz com Praia do Futuro um exercício estético e ético da virilidade. Seja numa sequência em vários planos fechados nos braços, pernas, costas de um grupo de bombeiros exercitando seu balé de exercícios rotineiros, na dança-boxe de dois amantes ou na porrada entre irmãos no momento em que eles se reencontram, o filme é um músculo retraído, é o não dito dos homens que se esquivam do verbo, mas não da pancada.
Linda análise, Carol! Ainda não vi o filme mas me parece que você passeia por essa “praia” tomando caminhos novos, diferentes dos que outros críticos percorreram. Quando eu for vê-lo, quero ir por suas trilhas!
;) Quero saber depois as trilhas que você percorreu.
Quando terminei de ver o filme, senti uma sensação de vazio. Era como se o personagem de Moura não soubesse exatamente para onde queria ir, mas ali achou um canto confortável (não de início), mas estável, ao qual pudesse se adaptar frente à ajuda de Konrad. Aí, encontro seu texto e tudo se esclarece! Obrigado e parabéns!
PS: Achei a escolha dos três nomes super apropriadas. Percebeu como eles se assemelham às essências dos personagens?