Segurando na mão do outro, ele tenta ensinar que relevo é linguagem. Mas o outro, sem nunca ter sido negado à sua condição de quem enxerga, resiste: “É impossível”, diz. Não é. Impossível mesmo seria ele, um menino cego, andar de bicicleta. Essa cena de Hoje Eu Quero Voltar Sozinho condensa várias das questões que o filme demarca dentro e fora dele mesmo. Dentro, porque estamos falando de uma história que naturaliza a poesia do improvável. Fora, porque nem o mais otimista dos produtores poderia imaginar que um filme sem elenco conhecido ou insumo publicitário da Globo Filmes pudesse estrear em 33 salas de 17 cidades brasileiras. O primeiro longa de Daniel Ribeiro é, portanto, esse menino cego cujo delírio de manobrar uma bicicleta se torna palpável. Vamos nos deixar então ser guiados por ele.
Baseado no premiado curta-metragem Eu Não Quero Voltar Sozinho, o longa é uma experiência mais profunda nas camadas de euforia hormonal da adolescência quando ela se depara com a inevitável curva do primeiro amor. O argumento dos dois formatos é o mesmo: menino cego, incônscio de que sua melhor amiga é apaixonada por ele, se descobre atraído por um novo aluno do colégio. Naturalmente, o filme que chega agora aos cinemas vai lidar com questões mais abstratas e complexas desse despertar lírico. Entram em cena a relação do protagonista com os pais, os limites que lhe são imputados dada sua deficiência física, fronteiras da amizade e o bullying na escola. Molduras que enriquecem a questão central do filme: é possível dar contornos morais ao amor quando não se vê? O exercício de desenxergar aqui não é uma privação, mas sim uma livre abdicação de preconceitos.
Leo, o menino cego, encerra nele todos os elementos das descobertas da adolescência. O fato de não conseguir ver o faz ainda mais suscetível ao deslumbre do desconhecido e à ânsia por sua autonomia. Guilherme Lobo, ator que o interpreta, trabalha a toda hora entre as notas da ingenuidade e de uma comportada rebeldia, ambas na beira de levar uma queda, como quem acredita que nunca poderá cair se equilibrando em apenas dois pés da cadeira. E suas certezas, como as certezas de qualquer adolescente, logo o farão tropeçar.
Com um roteiro muito bem equilibrado, os dois outros eixos dessa trindade também se revelam sob novos ângulos. Fábio Audi no papel de Gabriel, o aluno novo da escola, consegue demonstrar toda a vulnerabilidade de alguém despreparado para essa aventura ao centro do primeiro amor. Seus risos nervosos, uma pretensa segurança e o olhar de quem, com frequência, pede autorização do outro para ver expõem alguém que representa bem essa oscilação própria da idade.
Na outra ponta, Giovana, a melhor amiga, é a personagem que dá o salto mais alto entre o curta e o longa. Se no primeiro filme ela constantemente era apenas o meio do caminho entre os dois meninos, aqui ela se torna um alívio cômico que muito sabiamente quebra a tensão dramática da narrativa. Tess Amorim, a atriz, parece ter nascido com um extraordinário timing para o humor. E isso fica ainda mais evidente com a introdução de uma nova personagem na história, Karina, a menina que dá em cima de todo mundo no colégio. Curiosidade: a atriz que a interpreta, Isabela Guasco, é aquela criança eufórica e fofa de Durval Discos.
Todos eles são saudados por uma direção e roteiro precisos, meticulosos e simétricos de Daniel Ribeiro. Suas escolhas por uma narrativa clássica de pontos de virada, uma trilha sonora entre o pop e o piano erudito e uma câmera sem flutuações servem ao propósito maior do diretor, que é contar essa história da maneira mais lúcida possível, sem com isso perder a poética de alguém que, tal como seu personagem principal, sabe se dar um momento para tatear o desconhecido. Cenas como a de Leo imaginando seu primeiro beijo no box do banheiro ou se cobrindo com o cheiro do moletom de seu colega mostram que Daniel é muito ciente da beleza plástica que só o cinema consegue ceder a um personagem, mas também se permite ser levado às escuras pela ação cinematográfica.
Brindado no Festival de Berlim deste ano com o prêmio Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema) e com o importante Teddy Award, o filme enquanto produto de mercado é um estudo de caso. Como dito anteriormente, seu impressionante arranque em número de cópias distribuídas pelo Brasil aponta para uma “lacuna” (para citar a produtora do título) temática que somente agora parece ser preenchido. E não estamos falando de personagens gays, mesmo porque o cinema brasileiro nunca se omitiu deles. Mas de adolescentes gays cuja sexualidade não é a problemática central.
Graças a esse tom, quando o curta foi disponibilizado na íntegra via YouTube, conseguindo mais de 3 milhões de visualizações, ele criou um público que se tornou a principal peça de marketing do longa que estreia agora. É capitaneado por esses fãs e pelo trabalho “corajoso” da distribuidora Vitrine Filmes, como diria Inácio Araújo, que Hoje Eu Quero Voltar Sozinho tem tudo para surpreender os céticos exibidores brasileiros e, não só isso, guiar no braço uma nova perspectiva de abordagem do cinema nacional que lide com a homoafetividade. E que assim seja.
é exatamente isso, carol! acho que a reação da plateia, durante a exibição, é um atrativo a parte… as pessoas viveram o filme com o coração, pelo menos no lugar onde eu vi, no Cinema da Fundação. beijos!