Ela, de Spike Jonze

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Ela é um filme tão bom quanto um peça publicitária que te convence a precisar urgentemente de um produto não por aquilo que ele é, mas pelo que ele pode ajudar você a ser. Não digo com isso que se trata de um filme charlatão, ou mesmo um filme sem cinema dentro dele, até porque existem reais qualidades cinematográficas nessa história. Digo sim que se trata de um filme que se vende como uma fábula filosófica pronta para ser extensivamente debatida por colunas de opinião quando, na verdade, é uma fábula sobre os caminhos e processos que hoje levamos para debater essas questões pretensamente filosóficas engolidas como cápsulas de sabedoria instantânea. Ou seja, não são as questões, mas como – com que ritmo e estética – as perguntas são feitas.

É em elementos como o apartamento de decoração modulada, o escritório clean e o figurino e bigode hipster do protagonista que estão os verdadeiros debates desse novo trabalho de Spike Jonze. Para colocar na mesa temas como solidão, carência afetiva, conceito de amor e particularmente a crescente sensação de que não mais existimos fora do ambiente virtual, Jonze usa a mesmíssima moldura que adotam os cartazes hoje compartilhados pela timeline mais próxima de você. Tudo é agradável, limpo, às vezes até fofo, a luz tem com frequência um filtro nostálgico, mas, claro, uma nostalgia esterilizada pelo digital. É o futuro tal como ele foi desenhado pela Apple ou pelo Google Glass. Vejo mais conteúdo no uso dessa estética como mecanismo de linguagem das aflições contemporâneas que nas aflições por si sós, isoladas dessa moldura. Ela é, sobretudo, um filme-tipografia, um filme-design. E as verdadeiras questões surgem daí.

Existem dois protagonistas no filme. Ele e Ela. Ele é Theodore Twombly, interpretado por um melancólico Joaquin Phoenix, um homem que vive só em um apartamento com janelas que vão quase do chão ao teto e trabalha numa “editora?” de cartas escritas à mão. Em sua dinâmica cotidiana, Theodore narra cartas para outras pessoas, fala em voz alta linhas de amor, saudade e memórias dos outros. Tudo que sai de sua boca é automaticamente desenhado por um programa de computador que cria tipografias distintas para cada carta encomendada à empresa. Seu ofício é dar conteúdo humano a um produto inumano.

Ela é Samantha, interpretada somente em voz por Scarlett Johansson. Samantha é um “sistema de operação”, um programa de inteligência artificial. Uma das várias configurações do modelo OS1, que vende a ideia de entregar a seus usuários uma experiência de diálogo real, com alguém que, rastreando seus emails, suas ligações, seus hábitos e até seu tom de voz, conseguirá te entender (leia-se “te aceitar”) melhor. Seu ofício é dar conteúdo humano enquanto produto inumano.

Theodore e Samantha vão viver uma história de amor. De cara, poderíamos entender que a grande premissa do filme é criar o debate do quão legítimo ou lícito é uma relação afetiva entre um homem e algo que não é humano. Mas a literatura e o próprio cinema são há muito tempo familiares com questões assim. Há uma vastidão de personagens humanos que já se apaixonaram e criaram relações com bonecas infláveis, macacos, patos, monstros e andróides.

O que distingue Ela de todas essas demais histórias de amor é justamente a inexistência física de um dos lados envolvidos. Samantha é o design da ausência. Sua única materialidade reside em sua voz: feminina, sexy, acolhedora. Quem dará contorno a ela é Theodore, a levando pra praia, para piqueniques com amigos e até mesmo para cama. E o filme faz questão de sublinhar nos cenários estéreis (mesmo a praia parece ser desenhada para ser um ambiente sem ruídos) toda a aflição das relações insípidas construídas com base nessa receita de felicidade plasticamente conformada.

Ele diz que admira o olhar dela diante do mundo. Mas o olhar dela é dele. É pela lente de Theodore que Samantha experimenta esse mundo. O novo trabalho de Spike Jonze é, em sua mais íntima essência, uma discussão sobre o olhar numa sociedade em que nossas projeções morais muitas vezes se aprisionam em projeções estéticas. E o filme se usa desse mesmo design do ideal para, ironicamente, nos entregar teses profundas não exatamente por seu conteúdo, mas precisamente por sua embalagem. Vivemos em um momento em que só conseguimos compartilhar nossos problemas, amores e desamores quando eles estão empacotados em cartazes bacanas ou em fotos onde o jarro de flor parece estar sempre no lugar certo. E quando o protagonista diz que quer compartilhar sua vida com aquele OS, é exatamente isso que ele faz: filma, registra e edita imagens legais para ela.

As questões que surgem do relacionamento entre esses dois, e dos demais relacionamentos que se estabelecem entre humanos e seus respectivos OS no filme, se encaixam como uma luva às demandas do mundo que hoje persegue esse ambiente do bem-estar filtrado. Deixamos de nos apaixonar pela ideia para ceder aos encantos da imagem que a ideia nos dá? Naturalmente, outros debates surgem ao longo do roteiro: Existe livre-arbítrio em uma inteligência artificial? E se sim, qual nosso julgamento para a legitimidade desse livre-arbítrio? As perguntas vão gerar um sem-número de análises. Mas estou certa que o filme não teria o impacto que ele terá em tantas pessoas não fosse esse laço vermelho rosado que o embala.

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