Entrevista: Alê Abreu (O Menino e o Mundo)

O menino

O Menino e o Mundo pode ser um filme triste que te enche de alegria. Ou um filme alegre que te enche de tristeza. Em ambos os casos, essa é uma animação que, entre sentimentos conflitantes, quer falar sobretudo sobre coragem. Sobre um menino que, impávido pequeno, desbrava o mundo para achar a si próprio. Em entrevista com Alê Abreu, descubro então que essa impetuosidade está no cerne do processo em que a animação foi construída. Com um roteiro completamente aberto, se adequando às descobertas de um diretor predisposto ao erro, a “dar com a cara no muro”. Esse arriscado processo, no entanto, explica por que esse é um filme com todas as qualidades da excelência. Feito com cerca de R$ 2 milhões, o novo trabalho de Alê Abreu mostra que novos caminhos são possíveis para a animação no Brasil e, se o povo lá fora estiver atento, no mundo. Confira a conversa:

Você tem um trabalho de animação que, com muita frequência, aborda questões sociais: fala de capitalismo, de aprisionamento… Isso é algo calculado?

Faço dos meus trabalhos um exercício de me colocar na roda com questões que vão surgindo e que vão revelar outras tantas questões. Tento relacionar toda essa confusão que está na minha cabeça da maneira mais sincera e entregue possível. O Menino e o Mundo foi o trabalho que consegui melhor exercitar esse processo. E o que se revela no filme é muito mais relacionado a esse processo do que qualquer ideologia. Muito embora, o próprio processo de trabalho seja, ele mesmo, um pouco ideológico. Meu processo é muito em cima de criar teses e antíteses que trazem sínteses que vão entrar na roda de novo.

Fazer um longa em animação é algo que leva tempo. Esse processo que você fala começou quando com o O Menino e o Mundo?

Só consegui fazer O Menino e o Mundo desse jeito porque nós somos independentes. A gente produziu esse filme com essa condição temos de fazer cinema no Brasil, com patrocínios de empresas através de editais. Ou seja, ela nasce sem essa necessidade de se pagar na bilheteria. Por um lado, eu tenho um orçamento muito baixo, mas por outro há um ponto bastante positivo porque nunca tive essa preocupação de levar o filme por tal caminho pois preciso vendê-lo. Nesse filme, não parti de um ponto sabendo onde eu ia chegar. A história de O Menino e o Mundo começa quando eu estava fazendo um anima-doc que se chamava Canto Latino, em 2008.

Era um documentário que pretendia, usando do recurso da animação, fazer uma revisão, embarcar numa viagem sobre a formação da América Latina, países que tiveram todas histórias de infância muito parecidas. A partir dessa pesquisa, fui descobrindo as músicas, principalmente músicas de protestos dos anos 60, 70. Fui me apaixonando pelo Victor Jara, Violeta Parra, Silvio Rodriguez e tudo que foi esse movimento nascido com esse olhar pra história. Esse personagem do filme era um viajante e ele tinha um diário de viagem. Ele fugia de uma ditadura em um país fictício da América Latina e ia pro Eldorado, esse outro país. Estava no meio desse furacão de pesquisas, viajei toda a América do Sul, fiz oficina com crianças nas terras zapatistas e, nessas andanças, eu também carregava meus diários de viagem. Num desses diários, terminei encontrando a figura de um menino, desenhada de um jeito muito simples e rabiscado.

Esse menino me chamava atenção. Toda vez que eu passava pela página onde ele estava parecia que ele já continha ali toda uma urgência. Ele chegava carregando, esteticamente, questões. Então eu tinha todo esse pano de fundo que era a pesquisa do Canto Latino e toda a ideia desse espaço geográfico em cidades em formas de gráficos, refletindo as distribuições sociais da cidade. Havia o lugar e o havia o menino. E esse menino, além de ser um excluído, é especial porque não tem um entendimento tão óbvio do mundo, não tem um canal de comunicação tão aberto, das notas musicais ele vê cores. E daí fiquei pensando: como esse menino se encaixa no mundo? Vou dar as mãos a ele e vou me colocar à sua altura pra tentar, com toda sinceridade, entrar nesse jogo. Eu poderia dar com a cara no muro no final. Mas fiquei um pouco contaminado por essa coragem de não querer saber o que viria. E aí decidi: eu vou gritar, vou me lançar, se der errado é porque tinha que dar errado. Eu sentia essa agressividade muito latente e esse desejo muito potente de me lançar numa jornada dessa.

Fui, sem roteiro, criando e ouvindo as músicas. E fui ficando muito emocionado com o que elas me traziam. Quando a gente começou a chegar na parte do filme que fala da globalização, entendi que não dava pra ficar preso só numa questão latino-americana e vi que era positivo abrir pra uma história mais universal. Comecei a me livrar das referências latino-americanas, a trazer outras músicas, de outras histórias. E no caso das músicas, o que elas me traziam de sensações, eu ia criando momentos pro menino. Ele sendo carregado pelo vento, se despedindo do pai. De repente, ele se encontra com um homem mais velho, depois com um jovem que, a princípio, seria apenas um amigo dele. Não sabia nem porque ele tinha que encontrar com essas pessoas. Saí criando várias anotações até que, em algum momento, fui entendendo o que é que começava a se apresentar naquele filme. E as mesmas surpresas que alguns espectadores têm quando assistem a ele, foram surpresas que eu tive ao longo da produção de O Menino e o Mundo.

As descobertas do menino são as tuas descobertas?

É isso. Eu fui esse menino. Me entreguei às dores e alegrias das descobertas dele. Segui por muito tempo esse personagem, fiquei bem próximo dele.

Você fala que o menino carregava, esteticamente, questões. O fato desse dele ser desenhado como é não deixa de ser um posicionamento político do filme. Diante de uma indústria de animação com tanto 3D e computação gráfica com desenhos realistas, esse traço se torna, de fato, um discurso?

Sim. Novamente, esse traço não foi uma escolha racional minha, não foi motivado por uma matemática qualquer. Mas, é claro, quando eu tenho um filme que está falando de mudança, revolução, mercado e como todas essas coisas afetam as pessoas, a primeira armadilha que o filme poderia ter seria cair no padrão de animação desse mesmo mercado. Por uma questão de coerência com a história, ele não poderia repetir uma fórmula, um padrão. Optamos por um filme na contramão. Tanto visualmente, como em estrutura de roteiro. A experiência de fazê-lo foi completamente radical. E as opções estéticas dele se posicionam fortemente com questões políticas.

Isso é uma coisa que acompanha meu trabalho. Sempre me senti sufocado pelo maneirismo dos grandes estúdios. Quando fiz O Espantalho, por exemplo, eu tentava sair pela porta misturando o desenho com fotografias, mas ainda assim o desenho daquela menina é muito pós-Disney, entra num padrão de animação clássica que poderia ter sido feito por qualquer outro estúdio. E já que você mencionou essa coisa do realismo, acho isso absolutamente empobrecedor para o cinema de animação. A animação te dá tantas possibilidades técnicas que desembocam em linguagens e aquilo tudo se torna uma alquimia. Mas os estúdios hoje estão preocupados em fazer um fio de cabelo que tenha até a última célula. Já tivemos a arte moderna depois do Renascimento, acho que estão querendo voltar no tempo.

Falando da música, que é tão importante em O Menino e o Mundo, o contato com o Naná Vasconcelos aconteceu em que ponto do filme e por que ele?

Então, o Naná é um dos músicos que mais admiro no Brasil. Ele é um gênio e uma das pessoas que mais me direcionou. Talvez minhas maiores influências não sejam pictóricas, sejam musicais, e na música o Naná sempre foi uma referência. O descobri quando tinha 17 anos, ele tocando com Egberto Gismonti. Parece que Naná sempre me dava essa coragem de que te falei. A música dele vem pra nos colocar numa certa vibração que nos enche de coragem. Sempre tive vontade de convidá-lo pra um trabalho meu, e quando chegou O Menino e o Mundo senti que finalmente estava na hora de fazer isso. Antes dele entrar pro filme, algumas cenas eu já construía em cima de músicas do Naná. Então, como eu já tinha todas essas referências, falei pro Ruben (Feffer) e pro Gustavo (Kurlat), ‘vamo trazer ele pro projeto e colocá-lo nessa alquimia’. E foi um processo aberto, porque à medida em que eles iam me trazendo as músicas, eu relacionava elas a algo que estava desenhando. Durante as gravações das músicas do Naná, descobri coisas novas pro filme. Naquela cena em que os dois pássaros estão brigando, ele usou dois microfones e ficava indo de um lado pro outro fazendo os sons de cada lado da briga. E aí, enquanto ele fazia isso, percebi que a batalha entre aqueles dois pássaros era a batalha de um homem só. Esses dois pássaros estão dentro da gente, a batalha é interna. Só fui perceber isso com o Naná.

As pessoas que fazem animação costumam ser distantes de quem faz cinema?

Eu percebo isso. Mas não sei explicar exatamente o porquê. Eu mesmo não sou um cara muito da animação, embora faça desenho animado. Claro que admiro alguns nomes importantes, como o (Hayao) Miyazaki, o René Laloux, o (Sylvain) Chomet das Bicicletas de Belleville, mas sou uma pessoa muito mais ligada, por exemplo, em pintores do final da arte moderna do que os próprios autores de animação. Tive referências de animação da minha adolescência, quando eu queria fazer uma coisa meio Disney. Mas depois que eu ‘matei’ Disney, comecei a achar tudo aquilo uma bobagem. Acho que enjoei.

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2 respostas em “Entrevista: Alê Abreu (O Menino e o Mundo)

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