Brinquedos coloridos como brinde de uma alimentação hidrogenada, crianças sendo usadas para fazer sorridentes propagandas de bancos, escolas que oferecem aos pais vigilância total de seus filhos, meninas de rosa e meninos de azul sendo criados atrás das grades de condomínios seguros. Nos muros, o murro. Não é fácil ser uma pequena pessoa em formação nesses dias de vitrines tinindo um mundo em que é preciso ter e trancar. E eis que diante de toda essa animosidade, Alê Abreu faz uma animação que nos enche de ar e de ideias. Como se fôssemos balões de hélio soltos na atmosfera, nessa alegria-airgela de entender que a nossa maior liberdade sempre será nossa consciência crítica. E sim, estou falando de um filme infantil.
Alê, que vem de um longo trabalho com animações (quatro curtas e um longa) sempre muito cientes e cronistas desse estado delicado de coisas e sistemas, nos entrega um filme nada menos que emocionante, com o perdão pela simplicidade da defesa. É que talvez os elogios precisem ser mesmo descomplicados para que possam ser consoantes com o filme em questão. Porque é no simples onde O Menino e o Mundo se torna requintado e grandioso. Faz isso partindo da história de um menino que foge de casa à procura de seu pai. Nesse caminho, vemos se descortinar a evolução de uma criança que vai achando ela mesma nessa busca pelo outro enquanto observa a alma do mundo adquirir uma estranha e gigante engenharia mecânica.
Poderíamos dizer que O Menino e o Mundo é quase como uma ilustrada e colorida introdução à história da Revolução Industrial e de como ela mudou valores e criou doutrinas. Ou que o filme é, na verdade, a busca inversa, dos adultos que estão procurando o menino que saiu de casa pra brincar e quando voltou já era gente grande cheia de deveres e metas e prazos. De um jeito ou de outro, é uma animação bastante delicada em conduzir tudo isso que parece sério demais “aos olhos de uma criança”, como diz a música de Emicida no subir dos créditos finais. Uma criança que, como todas as outras, ainda guarda em si a estimulante aventura que é descobrir tudo pela primeira vez.
Com esses dois personagens centrais, o Menino e o Mundo, o roteiro coloca em relevo as diferenças entre o que há de mais orgânico, intuitivo e desbravador (Menino) e o que existe de mais automático, programado e conformado (Mundo). E a simplicidade desse argumento se reproduz na imagem e no som do filme.
Com um desenho a princípio minimalista, Alê Abreu usa de um efeito caleidoscópico já visto em seu primeiro longa, O Garoto Cósmico, para desdobrar cenários de poucos elementos visuais numa crescente de imagens que, à medida em que o filme passa, vão se tornando cada vez mais sofisticadas e cheias de detalhes. No momento em que o Menino vislumbra a grande cidade, o desenho que vemos é soberbo, porém frio. Sem saber, já temos um pouco de saudade daquele traço na folha em branco, com apenas alguns pontos coloridos que davam conta das coisas mais substanciais e necessárias tal como uma nota musical.
E a música. Eis aí o elemento afetivo mais essencial para a construção dessa narrativa. Com uma trilha soberba (trabalho de Ruben Feffer e Gustavo Kurlat), O Menino e o Mundo se tece na ideia de que pode estar numa música a nossa memória mais profunda de família, infância, liberdade. Entra assim em cena outra substância da ordem do “simples”: a flauta. O instrumento que desde sempre foi usado como iniciação musical nos introduz aqui às notas que vão acompanhar esse Menino na sua viagem em busca do pai e de algo que ele e nós só vamos descobrir no caminho.
Praticamente sem diálogos, e quando eles são falados as palavras são ditas de trás pra frente (um lembrete de que somos nós quem vivemos às avessas), o longa de Alê Abreu é um filme que intriga e anima, por mecanismos distintos, crianças e adultos. Fazendo uso das palavras que dançam pela música-tema dessa história, não estarei errada em afirmar que este é um belo trabalho feito com muita airgela adiv aigrene açrof roma zap edadrebil zov edatnov. E que você não vai achar o bonequinho desse filme no McLanche Feliz mais próximo. Adnia meb!
Abaixo, o clipe com a música composta por Emicida nos créditos finais e algumas das incríveis imagens do longa.