Ninfomaníaca, de Lars Von Trier

ninfo

Ao menos no que concerne aos 118 minutos de filme apresentados ao público nesse momento, não basta dizer que Ninfomaníaca é um trabalho moralista. Nem mesmo seria suficiente afirmar que esse moralismo transparece justamente numa história em que a protagonista mulher é, como o título sugere, viciada em sexo. A questão mais séria nesse primeiro capítulo do novo filme de Lars Von Trier é que em nenhum momento o sexo, isolado de qualquer valor social, é filmado pelo que deveria ser o elemento mais substancial e elementar na motivação de sua personagem central: o prazer. Restará a ele apenas a função de pecado.

Dessa forma, o que vemos na Ninfomaníaca que chega agora aos cinemas é um filme de pincéis católicos. Com direito mesmo a uma figura masculina representando o papel do confessor. Para falar de sexo, Lars Von Trier vai falar de culpa. Mais de dois mil anos de Cristianismo e parece que poucos conseguem se livrar dela. De qualquer forma, ainda assim não seria exatamente um problema para o filme ter a dita cuja no epicentro de sua narrativa. Mas é estupidamente perigoso não problematizá-la. Até porque, nesse campo, já se tem em abundância os falsos orgasmos hollywoodianos.

Importante lembrar que a filmografia do próprio Von Trier está aí como testemunha de que a culpa que tem sido dada à figura feminina desde aqueles tempos remotos da maçã mordida é uma das violências mais acintosas de nossa civilização. Isso estava bem explicadinho em vários de seus trabalhos anteriores, com direito até mesmo a giz desenhando o chão. Mas em Ninfomaníaca, ou ao menos nesse primeiro bloco de filme (a segunda parte será lançada em março), o que vemos me parece ser mais uma afetividade e simpatia pela culpa do que um enfrentamento dela.

A história começa com a personagem de Charlotte Gainsbourg, conhecida apenas como Joe, sendo achada em um beco por um homem (Stellan Skarsgård) que, diante do crítico estado físico daquela mulher, resolve a levar para sua casa (ela se nega a ser encaminhada para um hospital). Daí em diante, quase toda a extensão do filme transcorre no terreno dos flashbacks, quando Joe confessa relata seus crimes casos ao padre bom samaritano chamado Seligman (em tempo: Selig, em alemão, corresponde a “abençoado”. Significa?). Joe vai lembrar de sua infância e juventude e dos primeiros sinais de que o sexo seria o aspecto mais constituinte de sua personalidade.

De onde surge o problema inicial dessa história. Ao narrar sua vida para o atento e, aparentemente, bastante compreensivo interlocutor, Joe não exatamente reconstrói sua identidade a partir da descoberta do desejo, mas do sexo – e do sexo somente. O momento em que ela, aqui na pele da atriz Stacy Martin, é desvirginada se mostra propositalmente uma cena em que a personagem demonstra total indiferença em relação ao desejo. Ela quer, antes de tudo, romper seu status de virgem do que exatamente sentir prazer com isso. Jerome, o rapaz que cumpre com essa função social, interpretado por Shia LaBeouf, voltará a aparecer na história quando Joe é contratada para um escritório onde ele interpreta o papel de chefe. Mais uma vez, esse reencontro será medido pelo desejo dos olhos dele para ela, e não o contrário.

Porque Joe, já adulta, passa boa parte do filme se punindo verbalmente. “Eu sou uma pessoa má”, ela diz, sem com isso estabelecer os critérios de sua suposta maldade que não seja única e exclusivamente o sexo. Importante citar que ela não se posiciona como uma pessoa possivelmente doente ou com distúrbios de comportamento. Ela é fundamentalmente “Má”.

No que só me ocorre a questão primordial do Uso dos Prazeres, de Foucault: “De que maneira, por que e sob que forma a atividade sexual foi constituída como campo moral?” O filósofo francês volta até a Grécia Antiga para tentar entender como a sexualidade se articula desde então dentro do sistema de regras e coerções. Diante desse retrospecto histórico, Joe se situa muito mais no campo do que Foucault chama de “elisão do prazer” e de sua “desvalorização moral através da injunção dada na pastoral cristã a não buscar a volúpia como fim da prática sexual” do que na Antiguidade grega onde, ao menos para os homens, a prática sexual encontrava fim em si própria.

Mesmo nos flashbacks em que a personagem é vista em plena maturidade sexual, quando ainda jovem ela acumula parceiros que entram e saem de sua casa com hora marcada, Von Trier filma tudo como se ela fosse mais uma organizada matemática do que uma mulher obcecada pelo prazer em si. O diretor faz questão de retirar do sexo a sua lascívia. Pesa bastante a mão durante esse exercício.

No que chegamos ao segundo grande problema do filme: o excesso de múltiplas telas, o uso recorrente de legendas gráficas diante das cenas, as imagens de arquivo a ilustrar e-xa-ta-men-te o que os dois personagens centrais falam, as metáforas pobres que ligam a procura de vários parceiros com uma pescaria, com direito a alusões recorrentes às ideias de isca e fisgada. Poesia ou apresentação em Power Point? Dúvida atroz.

Quanto às cenas de sexo e nudez presentes no filme, digo apenas que títulos recentes como Um Estranho no Lago e Azul É a Cor Mais Quente fizeram muito mais em nome do tesão e da carne do que qualquer close de Ninfomaníaca.

Naturalmente, ao fim dessa primeira parte (coito interrompido?), vemos imagens bem mais interessantes do que pode vir adiante na história. As cenas do próximo capítulo parecem ser, ao menos, mais quentes. E ainda que trinta milhões de reviravoltas ocorram, imagino ser improvável que Lars Von Trier mude o caráter de sua personagem a ponto de tirá-la dessa autopunição moralista sem questionamentos sobre de onde ela, a punição, vem e pra onde ela vai. Enquanto esse segundo capítulo não chega, vou rever Jane Fonda gozando sem parar como Barbarella ou mesmo assistir Hedy Lamarr protagonizando o primeiro orgasmo feminino do cinema lá atrás, em 1933. Será um exercício mais prazeroso.

Nota de rodapé: esse primeiro volume de Ninfomaníaca que chega agora aos cinemas é “censurado” (ele usa essa palavra) com autorização e supervisão do próprio Lars Von Trier (oi?). O segundo volume, que chega às salas em março, idem. No Festival de Berlim, a primeira parte, sem cortes, será exibida (o pacotão completo de quase seis horas de filme deve ser lançado nos cinemas do mundo inteiro somente no ano que vem). E quem irá dizer que não existe razão nas coisas feitas pelo marketing?

2 respostas em “Ninfomaníaca, de Lars Von Trier

  1. são duas coisas: uma é que ela não está em busca do prazer. mesmo que a busca do prazer seja apresentada quando ela é jovem ainda, para justificar um vício que começa a aparecer e certa rebeldia jovial; o que ela faz se torna mecânico com o tempo. zero prazer. essa definição não aparece mais no filme, é abandonada.

    o sexo não vai ser isolado de nenhum valor social porque, fundamentalmente, valores sociais são as coisas que fazem uma pessoa se definir e se encaixar numa sociedade de certa forma: o que uma personagem carente e solitária como a joe anseia.

    a outra é que ela se prende a uma definição católica do pecado para justificar o que ela faz como ruim porque ela não teve uma formação especificamente falando: trata-se de um estereótipo ao qual ela se agarrou para poder se compreender. o errado, claro; mas o filme mostra uma mulher ignorante, que não entende do mundo, que nunca leu nem ouviu nada de interessante. ela pegou uma definição e trouxe para si, só. – a parte dois vai mostrar ela com um padre, acredito que foi aí que ela começou a trazer essa definição de pessoa má (na primeira parte do filme, com ela jovem, não vemos ela se definindo assim – só a joe adulta faz isso).

    você não sente simpatia por ela. você sente uma angústia porque ela não entende do mundo. porque ela luta com o luto com sexo, porque ela ocupa o tempo com isso, porque ela se forma com isso. é mecânico, frio. não é um filme pornô pra deixar a gente achando incrível ela satisfazendo desejo e tendo tesão.

    ps. a questão das analogias e das múltiplas telas é o melhor do filme. e é algo do outro personagem, o selig. ele é outro que precisa compreender o que acontece com a joe. ele é o detentor da cultura e das explicações no quarto diante de uma mulher que se julga e se define sem ter arcabouço para tal. são as analogias que tornam o sexo que ela faz ainda mais cotidiano e sem emoção. e isso foi ideal.

  2. É óbvio e esperado toda esta auto punição, pois ela acredita que o sexo destruiu sua vida. Aos 50 anos, depois de sofrer um episódio de violência, a personagem enumera todas as suas experiências e os prejuízos sociais decorridos do fato de ser uma ninfomaníaca.

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