:: Filme na programação da Mostra SP ::
Pretensioso, enervante e, sim, misógino. Com vocês, o vencedor do Prêmio do Júri em Veneza deste ano. Um filme cujos poucos respiros de câmera não apenas parecem canonizar plasticamente a violência contra a mulher e, por tabela, a absoluta subserviência da figura feminina, como o faz achando que fatiando a narrativa em 59 minúsculas fatias de cenas – Fluência dramática? Pra que? – sua forma poderia ser tão violenta com o público quanto a história é com a tal mulher do policial. Termina que ambos, meio e mensagem, se afogam na presunção de tentar apresentar algo novo.
Para deixar claro: os já citados 59 “capítulos” são todos introduzidos e finalizados com fades e duas legendas entre cada: Fim do capítulo 1, Começo do capítulo 2… E assim por diante em 175 minutos de filme. Alguns desses capítulos registram apenas cenários. A geografia apresentada, seja na floresta ou nas organizadas casas de tijolo aparente, se pretende tão idílica quanto a família do policial, sua mulher e a filha pequena, Clara. Até que no capítulo 9 entendemos que o jovem policial não é exatamente o rapaz da propaganda de margarina.
A pele dos três personagens, que já nos capítulos anteriores era filmada em supercloses, ganha novo peso dramático e estético no filme a partir do gradual surgimento de escoriações em Christine, a mulher (Alexandra Finder). Mas para além dessa epiderme a personagem não tem camadas que não a de vítima. Daquele tipo de vítima que só se entende em sua vitimização e que desfaz as regras da física em que toda ação tem sua reação. Seus conflitos com a violência que sofre não vão além de alguns momentos de choro ou queda súbita no tapete da sala. Ou seja, o conflito na verdade não existe, a personagem está ali apenas para servir como propriedade mulher de alguém, neste caso, de um policial. Sua subordinação já está explícita no título. Se chamasse apenas Christine, tenho certeza que veria outra história.
A relação entre mãe e filha, que poderia de alguma forma criar algum discurso que nos tirasse desse lugar 100% passivo, também não contribuiu para a imagem feminina. Clara, a filha (vivida pelas gêmeas Pia e Chiara Kleemann), levanta a bola em dois momentos do filme: questiona o Mal em si. Mas em ambas as ocasiões, se perde a oportunidade de colocar o quesito em debate. Em lugar disso, Groening filma uma raposa (tentativa pobre de figura de linguagem) ou os personagens cantando canções de ninar, as poucas rosas entre tantos espinhos.
Para piorar, em alguns dos 59 capítulos, vemos um senhor sozinho num apartamento minúsculo cozinhando sua própria comida. Rapidamente se entende quem é essa figura na história, e seu isolamento e melancolia nada mais são que uma tentativa de amenizar a violência em nome de uma Justiça (justiça???) que só o tempo e culpa podem dar. Tudo errado.