:: Filmes na programação da Mostra SP ::
Tomei a licença de juntar esses dois títulos em um mesmo texto porque eles não poderiam ser mais diferentes entre si ao tratar basicamente de um mesmo personagem central: menino de algum ermo ecossistema rural a quem se atribui poderes sobrenaturais, construídos socialmente por lendas e folclores de suas respectivas comunidades. Com esse protagonista em comum temos dois cinemas de polos opostos.
A começar por Lukas. É um desses filmes que dá vontade de assistir com um retrovisor do lado. Para acompanhar simultaneamente o que se passa na tela e a imediata reação daquilo no público que está ali atrás de você. Vou começar então pela imagem que “ouvi” lá de trás: impacientes pernas cruzando e descruzando, pessoas mudando de posição na cadeira, suspiros, passos de gente saindo da sala e, por fim, com os créditos subindo, comentários recheados de palavras que sua mãe não lhe ensinou. Naturalmente há exceções, mas estou tentando dar conta da “zeitgeist” da sala como um todo. Aliás, nessa audição, é preciso dar crédito ao próprio som da sala, muito abaixo do volume normal, o que possibilitou uma participação maior dos ruídos externos.
Agora, a imagem que vi na minha frente: fotografia lavada, às vezes fora de foco, estouradas, cenas de filmes antigos e corroídos, homens e mulheres que de perto ou de longe se enquadram em cenários distantes. Escutamos a voz de uma mulher por todo o filme. No começo, ela promete contar como as coisas aconteceram: das razões por que o homem deixou sua família, do motivo pelo qual a mulher ficou tão triste e o que havia na caixa que cruzou o rio. Ela quer contar essas histórias pra Lukas, mas precisa fazer isso de um jeito que ele nunca se esqueça delas.
Se desapegue da narrativa linear, do som direto e de diálogos. A partir de legendas que surgem como se num filme mudo, vamos captando peças de um quebra-cabeças que nunca poderá ser todo montado. O que sabemos: que Lukas é filho de um tikbalang, figura que no folclore filipino é uma mistura de homem e cavalo e que, portanto, ele próprio pode ser um jovem tikbalang. Mas há também a história do rio que deixa cicatrizes em casais apaixonados e que faz as pessoas esquecerem.
A memória parece ser um tema de peso maior nesse trabalho de John Torres. Não estranhamente, ele cria um filme dentro do próprio filme – e faz uso de muito material de arquivo – como se para registrar tudo que precisa lembrar. O filme inteiro parece ser alguém tentando recapitular um desses sonhos desconexos que temos em noites profundas. E faz isso usando a desconexão como linguagem. O resultado inquieta.
Vamos então falar de O Foguete, pré-indicado ao Oscar de Filme Estrangeiro pela Austrália.
Vencedor do prêmio de Melhor Filme de Estreia no último Festival de Berlim, esse é título que nina o sentimentalismo, afaga o lugar comum e faz cafuné nessa carência que temos pelo grande herói. Sendo ele uma criança predestinada ao fracasso, aí é que a coisa fica forçadamente comovente mesmo.
Os elementos a gente já conhece de longa data. Acompanhem: Na primeira cena do filme vemos um trabalho de parto. Nasceu um menino, Ahlo. A mãe chora de alegria e logo depois, de dor: outro menino ainda se encontra em sua barriga. Mas ele já nasce morto. A parteira, sua sogra, quer matar a criança viva pois reza a lenda que entre gêmeos, um deles trará boa sorte à família. Mas o outro só levará desgraça. A vó da criança desconfia que Ahlo se enquadre na segunda opção. A pedido da mãe, o menino não é sacrificado. Cena sequinte: close no rosto do jovem ator Sitthiphon Disamoe (este sim, uma preciosidade do filme) no vai e vem de um balanço.
Tragédias sim virão e a família será obrigada a sair de sua terra. Surgem personagens clássicos: a menina por quem Ahlo criará uma afetividade imediata e cúmplice, a avó rabugenta, o pai desconfiado e, claro, a figura excêntrica e engraçada (um sujeito que é obcecado por James Brown). Parece um roteiro de animação da Disney. Não desmerecendo nenhuma animação da Disney, até porque sou fã de quase todas várias, mas há um abuso de clichês em busca dessa óbvia redenção final. O resultado dá preguiça.