Mate-me por favor, de Anita Rocha da Silveira [especial Janela de Cinema]

Mate me por favor
Existe uma vasta e bastante diversa filmografia no mundo dedicada a elaborar a adolescência como um ecossistema de implosões e explosões, conflitos ideológicos, descobertas erógenas e experiências transgressoras. Um ambiente úmido bastante propício para se cultivar todo tipo de pauta existencial e, por que não, política. A pergunta que isola a palavra “política” depois da vírgula diz respeito diretamente ao rumo que o primeiro longa de Anita Rocha da Silveira toma de largada, somente para depois rejeitar esse caminho e pegar uma curva estranha para um lugar que nega todo seu potencial debate. As pistas plantadas por esse caminho para onde filme parece ir são recolhidas em algum momento e substituídas por um outro discurso esvaziado de… discurso. E apegado a um formalismo que não diz muita coisa em si mesmo.

Tudo se dá da seguinte forma: a sequência inicial nos mostra uma garota em situação de vulnerabilidade que somente uma mulher pode sentir. Sozinha, em uma cidade-deserto, ela é filmada por uma câmera que prevê a tragédia. E isso, de fato, ocorre. Desse primeiro assassinato, surge uma narrativa guiada por alunas de uma escola na Barra da Tijuca, o bairro não-cidade do Rio de Janeiro. As meninas começam a construir histórias em cima daquela e das subsequentes mortes de outras meninas cujos corpos aparecem nesse mesmo terreno baldio cercado por um horizonte de condomínios assépticos e onde ali perto também acontecem cultos pop-evangélicos. Está tudo dado pelo recorte do filme: garotas estupradas e assassinadas + ironia sobre alienações religiosas + a câmera que abre a lente para filmar os espaços vazios da Barra da Tijuca, com estações de ônibus que mais parecem cenários distópicos pós-apocalípticos. E quando tudo aponta para uma alegoria do terror que é ser adolescente nesse ambiente onde apatia, alienação e violência se tornam rima, eis que o filme começa a se soltar de todo e qualquer conteúdo político que, porventura, pudesse ser lido nele. E tudo fica muito confuso.

A condução da personagem central da história é bastante sintomática desses desvios que o filme faz. Bia, vivida pela atriz Valentina Herszage, cujo rosto e expressões se adequam perfeitamente às intenções do gênero terror, nos é apresentada como uma menina em seus 15 anos, relativamente popular no colégio, espécie de líder do grupo de quatro amigas. Vive praticamente só num apartamento da Barra ao lado de seu irmão mais velho (existe uma mãe ausente, que nunca aparece), um cara obcecado por uma tal Camila que não responde às suas mensagens. Ao contrário do irmão, Bia tem uma vida social e hormônios inquietos. Mas seu namorado de crucifixo no pescoço acha que é melhor ouvir a pastora no culto do que fazer sexo. As cenas que usam essa personagem no centro da ação se repetem em ciclos. Ela vorazmente pegando o namorado dentro de espaços pequenos, ela jogando handball na quadra do colégio, ela em meio à multidão de adolescentes famintos no disputado balcão da lanchonete. Aos poucos, os sinais de distúrbios são dados: ela tentando enforcar o namorado, ela arremessando a bola violentamente contra uma das amigas, ela comprando briga no balcão da lanchonete com outra menina. A violência e o destemor em Bia crescem na medida que a apatia e o medo dos outros aumentam.

Mas o que poderia ser sintoma de uma reação dela a esse ambiente neurastênico que tudo cerca, e aí sim haveria uma sequência coerente na abordagem política que o filme toma para si num primeiro momento, particularmente no que diz respeito à violência contra a mulher e ao cenário urbano desumanizado pensado como projeto de desenvolvimento, termina se desencaixando de qualquer propósito, seja em nome de uma possível leitura política, seja no campo formal do gênero de terror. O que acontece é que meninos também começam a aparecer mortos nesse terreno baldio, os corpos dos alunos da escola surgem em algum momento machucados, quebrados, a câmera lenta no melhor estilo Meninas malvadas tenta ironizar situações que não parecem irônicas e de Bia pode-se esperar tudo: audácia e medo, amor e ódio, tesão e apatia. A personagem vira uma gangorra emocional errante em um ambiente nervoso. Tal como o desfecho do filme, Bia se torna em algum momento o fantasma de sua própria ideia e o que antes parecia estar ali para servir de epítome de uma adolescência urbana neurótica, termina soando vago demais, de um vazio que não reflete sobre si próprio.

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