Carol Almeida

Zózimo Bulbul, no filme Alma no olho (1973)
O texto que se segue abaixo é uma revisão de um artigo publicado originalmente no livro Outros Críticos – O outro é uma queda, título tão profético sobre o que estamos vivendo no Brasil neste 2018 de nuvens pesadas, fraturas expostas. Publico ele neste momento entendendo que talvez seja um exercício resistente de se colocar tal como os violinistas do Titanic: não importa a queda, estaremos nobremente fazendo música, criando pensamento e poesia diante de qualquer naufrágio. Simplesmente porque não conseguimos fazer diferente. Então sim, que se pense, no meio do caos, sobre como as imagens podem nos salvar. Pois possivelmente, se tivéssemos visto, se tivéssemos de fato olhado frontalmente para as imagens tortuosas do Brasil Colônia, as imagens tortuosas do Brasil Ditadura, não estivéssemos vivendo (vivendo ou morrendo?) essa hipnose coletiva de ódio e horror.
Que o ponto de largada seja uma pergunta afluente de uma outra questão – “o que pode o cinema?” – a mover o pensamento crítico que entende a força estética das imagens sonoras como uma questão política da vida. Eis então: o que pode uma curadoria de cinema?
Sabe-se que o trabalho e o exercício crítico de curadoria em festivais de cinema, ainda que nem sempre tenha sido batizado sob a alcunha de “curadoria”, é tudo menos recente. No entanto, o debate público e intelectual sobre essa privilegiada função na cadeia do audiovisual ainda carece de maiores e mais profundos debates, atentos a colocar em questão a própria introdução do termo nas práticas dos festivais, o que essa nomenclatura (e espécie de chancela intelectual) do “curatorial” implica quando se fala de cinema e, particularmente, como essa tarefa de selecionar o que será visto – e o que não será visto – está diretamente ligada ao próprio entendimento do que vem a ser o cinema.
As reflexões aqui dispostas são resultado da combinação de três vivências distintas, porém absolutamente intricadas: a primeira surge da experiência de ter frequentado variados festivais de cinema pelo Brasil nos últimos anos, quando já se começava a estabelecer critérios de curadoria em alguns desses eventos, com equipes de pessoas preocupadas em estabelecer um certo diálogo no conjunto de filmes selecionados; a segunda se deve às leituras sobre processos curatoriais no cinema de uma maneira geral e a terceira é fundada nas conversas que acontecerem nos dois anos (2017 e 2018) em que participei da equipe curatorial de curtas-metragens do festival Olhar de Cinema, que acontece em Curitiba, bem como nas trocas que aconteceram durante a curadoria do Recifest – Festival de Cinema da Diversidade Sexual e de Gênero, que acontece em novembro deste tão simbólico e paradigmático 2018.
Leia-se: este texto vem de alguém que ainda está tateando sobre as implicações do que podem curadorias de festivais de cinema a partir de um recorte territorial brasileiro, porém com implicações diretas sobre como se dá o processo de curadoria para além das nossas fronteiras – e de como os festivais lá fora, particularmente aqueles europeus que carimbam aos filmes selecionados uma certa “qualidade de cinema”, influenciam, ou não, o que se dá pelas bandas de cá.
Comecemos então justamente com a definição do que vem a ser uma curadoria de cinema tal como ela é organizada hoje. A palavra costuma ser lida a partir de sua raiz etimológica que a leva para o campo do “cuidar”, neste caso, um cuidar dos filmes, de colocá-los em uma programação que favoreça não apenas a apreciação dos mesmos, mas o debate sobre eles. Amaranta Cesar, professora de cinema da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e curadora do festival CachoeiraDoc, lembra que, para além desse cuidado, a curadoria pode ser lida também como “cura”. Em entrevista para a revista Continente, Cesar resgata o conceito de curadoria de Hans Obrist, curador de artes visuais, para dizer que a atividade é também “sobre cuidar na perspectiva de desenvolver os contextos e as pessoas que estão envolvidas no campo. Quando eu falo de cura coletiva, é no entendimento de que nós temos contextos – isso é evidente em Cachoeira, uma cidade no interior da Bahia, pobre, o que não é uma singularidade dela – marcados por estruturas extremamente desiguais que produzem mortes, riscos de vida, apagamentos materiais e existenciais. Então, quando a gente pensa em desenvolver os contextos, é preciso também pensar nesses atravessamentos históricos dessas estruturas desiguais que perpassam também os contextos específicos do cinema.”
O cuidado e a cura, ainda que sejam dois conceitos muito próximos, apontam para objetos distintos. O cuidado, pressupomos, se dirige às obras (aos filmes), enquanto a cura só pode ser orientada às pessoas que entram em contato com essas obras. Talvez essa ideia de “cura coletiva” seja um ponto de partida instigante para tentar responder à questão do que pode uma curadoria de cinema. Particularmente quando esta se encontra historicamente localizada em um tempo de adoecimentos, quando o pensamento intelectual começa a ser em si questionado, quando há carência de embates críticos que propõem desconstruções e reconstruções, quando aquilo que conhecíamos como uma “esquerda esclarecida” se mostrou capaz de reproduzir operações racistas, classistas e sexistas, e quando há, simultâneo a tudo isso, uma ausência de compreensão do ser humano como um sujeito ambíguo, plural e, essencialmente, contraditório em sua natureza.
Acredito que há uma genuína preocupação de curadores dos festivais de cinema hoje no Brasil em tentar contemplar essa pluralidade e contradição da condição humana a partir de programações de filmes, palestras, oficinas e debates que reposicionem esses debates. Mas é inegável dizer que, no percurso das boas intenções, há muito ainda a se colocar em xeque, mesmo porque na especificidade do pensamento sobre ser brasileiro está a constituição de pontos cegos para questões de branquitude e negritude, de gênero, sexualidade e experiências étnicas distintas. Temos provas hoje mais do que concretas de como a negligência de encarar essas questões nos adoeceu.
É preciso, portanto, conversar bastante sobre a relação de poder que existe entre diferentes olhares e como eles – os diferentes olhares – conseguem dançar esse baile onde, ao mesmo tempo em que ainda se insiste em tocar um hit conhecido como “essência do cinema”, se escutam sons dissonantes e dissidentes que passaram a catar essa “essência” somente para poder samplear e remixar em cima dela.
Portanto, uma das questões centrais que atravessa, ou ao menos deveria atravessar, qualquer curadoria de festival de cinema no Brasil hoje passa necessariamente por entender até que ponto nós cá na periferia colonizada do planeta estamos endossando ou não um olhar europeu sobre o que deve ser essa periferia colonizada do planeta. Se debruçar sobre essa pergunta nos leva a dois fenômenos de mão dupla facilmente localizáveis na cinematografia produzida pós a restrita democratização de equipamentos digitais (restrita porque, obviamente, muito mais acessível a realizadoras/es com poder aquisitivo para comprar e alugar tais equipamentos).
Pra gringo ver
O primeiro desses fenômenos diz respeito a um movimento de dentro pra fora: realizadoras/es brasileiros que, não apenas tendo sido ensinados a entender o cinema a partir de uma historiografia e conceituação eurocêntricas (e, portanto, não necessariamente europeias) da arte, como igualmente apurando sobre o que é esse olhar europeu que te inscreve ou te elimina de selos como Cannes, Berlinale, Locarno ou Rotterdam, escorregam facilmente em imagens que agradam e se encaixam nos critérios de um certo “world cinema” desses respectivos festivais. Quando digo um certo “world cinema”, me refiro a um sentido muito específico dado à expressão e que é paralelo a outro termo bastante conhecido: world music. Ou seja, fala-se aqui de um cinema feito sob medida para o olhar do sujeito europeu, tal como a world music seria feita sob medida para a audição de “experiência antropológica” desses mesmos sujeitos. São imagens com enquadramentos estetizados que capturam e condensam o imaginário da Periferia segundo a imaginação do Centro.
Antes que se fale de como alguns filmes-sintomas dessa dinâmica colonial podem nos ajudar a compreender o tamanho do buraco simbólico, é fundamental dar protagonismo a algumas ações que, sem o orçamento e projeção midiática de festivais de cinema por onde circulam boa parte da crítica de cinema, deram as bases para que o pensamento curatorial de audiovisual partisse de pontos bem distintos de uma tradição da cinefilia europeia. Falo aqui do Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul, que começou em 2007, organizado pelo Centro Afro Carioca de Cinema Zózimo Bulbul; do já citado CachoeiraDoc, festival idealizado por Amaranta César e que teve sua primeira edição em 2010, e finalmente o Fórum Itinerante de Cinema Negro, o Ficine, lançado por Janaína Oliveira em 2013.
Essas três ações sempre priorizaram o debate sobre as possibilidades de descentralizar e descolonizar o olhar a partir de reflexões atreladas a uma produção acadêmica sobre o cinema que se lançava em novos processos de retroalimentação. Leia-se: objetos outros demandam epistemologias outras, e vice-versa. Do realismo de André Bazin ao olhar opositivo de bell hooks que, indiretamente, questiona sobre que pavimentos esse “real” é construído, do biopoder de Michel Foucault à necropolítica de Achille Mbembe, as perspectivas sobre os corpos em cena no cinema podem e devem ser feitas por outros caminhos do pensamento.
E, no entanto, passando ao largo desses debates que já se faziam intensos nesses circuitos, uma parte do chamado cinema independente brasileiro ainda reproduzia atos falhos em suas dinâmicas do olhar. O primeiro caso se refere a um longa-metragem produzido no estado do Amazonas, fato que é por si só um feito já que o estado está longe de ter uma política pública audiovisual consolidada. O filme se chama Antes o tempo não acabava, com direção de Sérgio Andrade e Fábio Baldo, e traz como protagonista um índio Ticuna aparentemente em conflito com as tradições de sua identidade indígena diante de uma sexualidade fluida que ele decide viver. O filme foi bem recebido na Berlinale, em Berlim, onde chegou a ser exibido em uma das mais importantes mostras do festival, a Panorama.
Porém, na sua primeira exibição no Brasil, durante o Festival de Brasília de 2016, a equipe de diretores e produtores do filme mal conseguiu dar conta das várias questões sobre arriscadas exotizações que o longa fazia. Se colocava em risco, segundo antropólogas presentes ao debate, a própria luta indígena já que, apesar de ser ficcional, o filme apostaria em elementos do real que, mal contextualizados, viriam a corroborar o discurso genocida da poderosa bancada ruralista no Congresso Nacional. É preciso frisar algo importante aqui: o debate sobre o filme foi levantado e aquecido por um grupo de antropólogas que chegou a ler uma carta de repúdio ao longa, e por Daiara Tukano, a única indígena que, além do ator protagonista (Anderson Tikuna), estava presente. Tukano teve uma fala simultaneamente crítica ao olhar da antropologia e das ONGs “salvadoras”, bem como ao olhar de um cinema ainda muito submetido a uma moral judaico-cristã de observar eventos religiosos tão distintos entre as próprias tribos que existem no Brasil. Ao fim de sua fala, ela chegou a mencionar que uma certa construção de imaginário também é capaz de matar.
Ainda que a conversa sobre o filme não tenha sido originalmente levantada pela crítica de cinema que costuma estar presente a essas conversas – e o Festival de Brasília historicamente privilegia esse espaço do debate – houve naquele momento uma virada, no mínimo, produtiva em como algumas produções brasileiras já chanceladas por um olhar europeu e, portanto, um que seria mais “legítimo” nas premissas de um bom cinema, poderiam suscitar sérias questões éticas. Corta para um ano depois, no mesmo Festival de Brasília. Um dia após a exibição do filme Vazante, de Daniela Thomas, um grupo de pessoas negras, entre realizadoras/es, críticos e espectadores de cinema, comparece ao debate sobre o filme e se posiciona diante de soluções narrativas do mesmo. Soluções estas que estariam ali para reforçar, muito mais do que questionar, o imaginário racista do Brasil colonial e que permite, por exemplo, que em alguns momentos do filme, se poetize em cima do corpo negro violentado. Alguns dias após esse debate, a mesma diretora reflete sobre o ocorrido com um artigo que ela publica no site da revista Piauí. Já no primeiro parágrafo do texto, Thomas afirma que seu filme foi aplaudido e celebrado em todas suas exibições no festival de Berlim. E que, portanto, após essa calorosa acolhida na prestigiada Berlinale, nada a podia preparar para o que aconteceria no debate em Brasília.
É sintomático que realizadoras/es, tenham eles o status de alguém como Daniela Thomas, com uma carreira já consolidada no cinema, ou mesmo de jovens diretores, sejam seduzidos pela sensação de que, uma vez endossados por entidades tão sólidas do cinema como um festival de Berlim, escudos intelectuais possam ser erguidos para defender escolhas estéticas dos mesmos, e que os festivais de cinema deveriam se manter como instituições mais celebrativas do cinema nacional do que exatamente questionadoras do mesmo, como se críticas negativas estivessem em um polo oposto à ideia de fortalecimento desse cinema. Ambos os casos aqui citados servem como exemplos claros de como esse olhar estrangeiro é um a qual facilmente se curvam não apenas diretoras/es, mas mesmo boa parte da crítica de cinema e que isso, em si, aponta para atos falhos coloniais que são centrais a boa parte de nossa produção criativa, seja no cinema ou fora dele. Não se sabe se as diferentes curadorias que selecionaram os filmes os colocaram na programação porque genuinamente gostaram dos filmes ou porque apostaram nos riscos estéticos que ambas as obras poderiam render em termos de debate (ou porque as duas situações se combinaram).
A partir não apenas das experiências no Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul, no CachoeiraDoc, nas sessões Ficine, no Festival de Brasília, como igualmente em debates que, ao longo dos últimos anos, vêm questionando a sub presença de mulheres dentro e fora dos filmes selecionados (a própria edição 2016 do Olhar de Cinema e a edição 2017 do Festival de Tiradentes foram palcos dessas questões), bem como a ausência de corpos curatoriais com mais pessoas negras presentes na equipe central do evento (Janela de Cinema de 2017 e Olhar de Cinema 2018), o trabalho de curadoria tem funcionado também muito como resposta a conversas recentes sobre representação e representatividade no cinema nacional, o que de alguma forma nos leva a algo que deveria ser nevrálgico em toda essa discussão: até que ponto representação (quem se vê na tela) e representatividade (quem realiza os filmes que serão vistos) não podem também indicar algumas revisões do que seria o “alto” e o “baixo” cinema, no sentido mais raso em que os termos de Adorno e Horkheimer foram e são até hoje usados.
Sabe-se que o debate sobre o olhar eurocêntrico diante de produções audiovisuais fora do eixo Europa-Estados Unidos é tudo menos nova. Para citar uma obra referencial para quem estuda cinema: Crítica da imagem eurocêntrica, de Ella Shohat e Robert Stam. Publicado originalmente em 1994, e herdeiro de vários textos anteriores dos estudos culturais e da teoria pós-colonial, esse livro já colocava o cinema feito às margens do centro de poder – na época a categoria usada ainda era o “Terceiro Mundo” – em contato direto com teorias que discutiam até que ponto movimentos cinematográficos cunhados como “estética da fome” ou “estética da resistência” criavam embates frontais a um modelo de cinema.
Passadas mais de duas décadas depois do trabalho coletivo de Shohat e Stam, chega a ser curioso ler aquele primeiro parágrafo de Daniela Thomas na revista Piauí e perceber que, da parte de quem se acostumou a representar “o outro” no cinema – a chamada “solidariedade mediada” nas “relações entre os intelectuais e as massas marginalizadas”, segundo Shohat e Stam – ainda é preciso muito exercício auto analítico diante do espelho. Mesmo porque esse instituído “outro” não mais se encontra distante, imobilizado tal como estátuas petrificadas pelas cinzas desse vulcão que é a imaginação eurocêntrica. O “outro” está ali, ao lado, fazendo cinema. Falo especificamente desse mesmo debate sobre Vazante (cujo orçamento final havia ultrapassado os R$ 6 milhões) em que, sobre o mesmo palco que Daniela Thomas estava Jéssica Queiroz, uma jovem cineasta negra que falava sobre seu primeiro curta-metragem, Peripatético, exibido na mesma noite anterior.
Eis então o segundo fenômeno ao qual este texto quer fazer referência, que fala de algo que vem de fora para dentro, ou seja, de como são necessários processos curatoriais que invertam a premissa de que o estético nunca possa ser pensado a partir do político.
Pode o subalterno ser ouvido?
Em 2011, a pesquisadora Nicole Brenez apresentou um artigo numa conferência em Melbourne, na Austrália, cujo título era: “Cinema político hoje – as novas exigências: por uma república das imagens”. O texto se tornou referencial não apenas para debates curatoriais dos chamados “filmes engajados”, como para compreender toda e qualquer curadoria como um processo inevitavelmente político. Visto que quando existe uma equipe, ou mesmo uma só pessoa, que seleciona as imagens que devem, ou não, ser vistas, se cria automaticamente um gesto de fazer circular e fazer apagar algumas histórias.
Mas entre as importantes questões que a pesquisadora dispõe ao longo do artigo – “que história queremos?” “o que é a cinefilia?”, “o que é uma obra?” – são para duas perguntas específicas que me atenho: “o que é a forma política?” e “o que é um realizador?” Para a primeira, Brenez indica que a costumeira separação entre o filme estético e o filme engajado é frágil justamente porque não percebe que todo filme engajado é necessariamente uma manifestação estética que indaga o próprio status do que é, ou não, a imagem cinematográfica. E que possivelmente o máximo de invenção formal que se pode ter hoje no cinema acontece quando a poética do filme se define não a partir de regras com as quais pressupomos que as imagens se organizem, mas por uma demanda pulsante da vida de quem faz esse cinema e consegue estabelecer, por urgência, precariedade ou apenas gramáticas outras (como as do youtube, por exemplo), novos modos de organização do audiovisual. O que durante muito tempo se entendeu, portanto, como vulnerabilidades da imagem, hoje pode ser lido por curadorias atentas como qualidade estética capaz de gerar um desafio crítico sobre ela. Isso tem a ver também com um certo tipo de cinema que, se apropriando de gramáticas já muito delimitadas e fixadas em nosso imaginário, consegue, como já dito aqui, samplear e remixar esse repertório para criar imagens inaugurais.
Penso em um dos curtas brasileiros selecionados em 2018 (Carne, de Mariana Jaspe) para o Olhar de Cinema e em como ele subverte a clássica cena padrão novela da Globo de um casal tomando drinques em uma piscina numa casa de luxo. Penso também no filme da já citada Jéssica Queiroz, Peripatético, que reinventa a tragédia de um adolescente da favela a partir de uma linguagem que beira o publicitário. Se caminho um pouco mais além, consigo pensar também nos dois clipes de MC Loma criados para a mesma música, Envolvimento, sendo o primeiro filmado a partir de uma estética da precariedade – celulares-câmeras, iluminações improvisadas, o uber-bicicleta – e o segundo produzido com orçamentos profissionais, remixando com as luzes “certas” a narrativa do primeiro. São todas produções que sabem brincar com pré-fabricadas expectativas de imagens e eis aí um estatuto de fé sobre o audiovisual com o qual compactuo. O que não implica dizer que os filmes (ou os clipes) sejam melhores ou piores em função das dinâmicas de reapropriações, somente que eles precisam existir na discussão.
A outra pergunta que merece ser melhor esmiuçada diz respeito a essa identidade do que se define como “realizadores”. Ela conta aqui o caso do diretor francês René Vautier, que teve sua carteira de comunista recolhida pelo partido quando decidiu filmar na Algéria: “lá fora, você não representa o partido, mas pode fazer o que quiser”. Brenez acredita na força cambiante e fluida da ideia que envolve uma/um realizadora/or que clame “representar todo mundo menos a si própria/o”. Cita exemplos de cineastas itinerantes que, em filmes documentais, fizeram esse exercício de deslocamento para abrir a câmera em outras paragens que não as suas mesmas. No entanto, não acidentalmente, os três casos que ela cita e que se encaixam nesse perfil de realizadora/or dizem respeito a uma elite intelectual que pode se dar ao luxo de ser, de fato, fluida e cambiante em suas não-identidades ao redor do Globo: um cineasta argentino, outro canadense e mais uma documentarista francesa (esta última contando com a parceria de um ativista maliano).
Nesse ponto, creio que Brenez, quando torce pela emergência de um certo tipo de realizadora/or que não se coloque como fonte de expressão original da imagem e circule por territórios sem precisar pertencer a eles (eis aí um privilégio que somente uma epistemologia supostamente neutra desfruta) deixa de observar também a emergência de realizadores que, pela primeira vez, podem criar novas poéticas da imagem justamente porque falam de si próprios. No Brasil pós anos 2010, quando começam a surgir os primeiros efeitos de uma política pública que, a partir de ações afirmativas, colocou nas universidades (e descentralizou várias dessas universidades) estudantes negras/os em graduações de cinema, é possível identificar a força de um cinema que ganha potência pela qualidade praticamente inédita de suas imagens, visto que a relação entre o objeto da câmera e o sujeito por trás dela se tornou, em vários momentos, horizontal, familiar, mais opticamente e hapticamente próxima que qualquer efeito de close conseguisse dar conta.
Ou seja, o velho e atual problema de pesquisa de Gayatri Spivak – “pode o subalterno falar? – não é, como bem diz a pesquisadora Jota Mombaça, uma questão de fala, mas de escuta. O subalterno fala. Sempre falou. Sempre irá falar. Mas quem o escuta? Quais os espaços em que se escuta o subalterno?
Retoma-se então à pergunta inicial: o que pode uma curadoria de cinema?
Pode, sobretudo, debater quem, ao longo da História, nos acostumamos a ver e escutar e como isso funciona na consolidação de imaginários que afetam diretamente a circulação dos corpos no mundo. Pode abrir o campo de visão para novas combinações espaços-temporais e de como elas dão a ver afetos e tensões que partem de outras formas de experimentar e ler o mundo. Pode sentir que o cinema, com a vibração sonora que emite e raios de luz que dispara sobre a gente, é capaz de, para além de produzir sentido, produzir presença. Pode discutir as especificidades da linguagem cinematográfica – porque elas existem –, a partir de sua qualidade elástica. Pode respirar e entender que a imagem urgente não elimina a imagem contemplativa e vice-versa (e que, às vezes, contemplação também pode ser uma urgência para nossos corpos).
Pode questionar essencialismos facilmente cooptáveis sobre o que deveria, para o sono tranquilo do sujeito hegemônico, ser um “cinema feminista” ou um “cinema negro” ou um “cinema LGBT+”, como se estes fossem blocos uniformes e imóveis. Leia-se: é preciso lutar por um cinema feminista, um cinema negro e um cinema LGBT+ que existam em todas as infinitas variáveis que as experiências coletivas desses grupos podem oferecer, e não condicioná-los a um desejo de respostas fáceis sobre o que é ser mulher, negro ou LGBT+ como um contraponto a um cinema que parece ser mais cinema porque não vem marcado por suas especificidades: branco, masculino, heterossexual…
E uma curadoria de cinema pode ainda, no esteio disso, igualmente se surpreender com a capacidade de deslocamento que realizadoras/es têm, como diria Brenez, em representar tudo menos a si própria/o.
Na versão original, eu terminava o texto com uma proposição otimista: uma curadoria de cinema pode e deve, enfim, se autoanalisar sempre. Algo que aprendi bastante nos dois anos de curadoria do Olhar de Cinema e na curadoria do Recifest, analisando e discutindo centenas de filmes estrangeiros e brasileiros, foi que a experiência de conversa sobre eles é um constante processo de revisão, simultaneamente pessoal e coletiva, sobre que subjetividades carregamos quando pensamos cinema, e como isso reverbera quando esses filmes são dispostos juntos em uma programação. Trata-se, felizmente, de um debate sem fim, que procura (ou deveria procurar) sempre mais perguntas que respostas.
Revendo agora esse texto, escrito inicialmente em um momento pulsante do cinema e do pensar cinematográfico no Brasil, tento respirar. Curadorias de cinema, se ainda puderem alguma coisa, deverão fazer ruir alguns mitos fundadores que nos são tão, mas tão caros hoje. A fatura do Brasil sob a ótica do “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda, e da “democracia racial” da Gilberto Freyre, está sendo paga neste momento. Nos recusamos a ver as imagens que, doendo, poderiam nos curar de um estado de constante negação sobre o montante de sangue que foi derramado sobre essas terras.