Os personagens já conhecemos. Suas paranoias, inadequações, frustrações e, principalmente, aquela particular negação de todos os problemas que não sejam os seus. De volta à casa, os Estados Unidos (neste caso numa dobradinha Nova York/São Francisco), Woody Allen retoma também as piadas com as idiossincrasias dos que vivem de pontes aéreas internacionais, jantares milionários e álcool, muito álcool que é para o sorriso se manter sempre disposto. No resgate daquela extrato social que ele tão bem filmou em Match Point, Allen faz um roteiro quase que no automático, as ironias se repetem. O resultado poderia facilmente cair no mais do mesmo. Mas eis que entra em cena Cate Blanchett. E sua Blue Jasmine fará deste filme uma das obras mais irresistíveis da prolífica carreira de Woody Allen.
Porque se por aqui tá cada vez mais down a high society dos “reis dos camarotes”, na leitura que Cate Blanchett faz dessa falência moral da alta sociedade, a chacota adquire tom de arte. E o filme muito acertadamente se cerca dela para contar sua história. Blanchett cria essa mulher que anda de salto alto sobre a corda bamba na qual sua vida se transformou desde que seu marido, e mantenedor de todos os seus luxos, foi preso pela polícia graças a um gigante esquema de sonegação de impostos. O desequilíbrio é inevitável, mas o talento da atriz está em fazer a gente acreditar que o perigo está no controle, e não na queda.
Somos apresentados à personagem pelas palavras da própria. Dentro de um avião, ela elabora frases que não respiram qualquer pontuação na intenção de se manter de alguma forma ainda interessante para as pessoas por perto, neste caso uma senhora que possivelmente se arrependeu de não ter fingido um sono profundo no voo. Ela fala do passado em tempo presente. Diz como conheceu o marido e do que tocava quando eles se apaixonaram: Blue Moon, a música feita por encomenda para corações solitários que acabaram de descobrir seu par. Ou seja, é uma música que desde os anos 30 vem sendo “a” trilha sonora de vários casais. Mas o que tem de comum e ordinário em sua apropriação, Blue Moon tem de distinto em sua melodia. Quase como a própria protagonista, uma mulher comum (cujo nome real é Jeanette) com talento para ser única (Jasmine).
Falida depois de anos comendo, bebendo e vestindo do melhor, Jasmine está viajando para São Francisco, onde ela vai se encontrar com sua irmã, interpretada por Sally Hawkins, atriz que apesar de todo o talento, parece sempre cair no mesmo papel, o da louquinha feliz. As duas não são irmãs biológicas (ambas foram adotadas), e de primeira elas soam como pólos opostos. Ginger não tem classe, requinte ou grandes ambições. Enquanto Jasmine nasceu pra tudo isso. No entanto, ambas sofrem exatamente do mesmo mal: acreditam piamente que os homens podem ser a redenção de suas vidas.
A se falar neles, o elenco masculino do filme, a exemplo do diretor, não parece assim tão dedicado. Alec Baldwin, como o marido rico e posudo de Jasmine é aquela coisa dele fazendo ele mesmo e Bobby Cannavale como o novo namorado de Ginger é um fracassado tão caricato que mais um pouco ele estaria pintado de amarelo em algum cenário de Springfield. Mais uma vez: concentrem-se apenas em Cate Blanchett.
A pontuar que as comparações entre a personagem dela com a Blanche DuBois de Tennessee Williams são inevitáveis. Estamos falando da decadência de uma mulher que se nega a reconhecer sua maquiagem borrada no espelho enquanto bebe seus problemas. Mas no que o roteiro falha em tentar decalcar essa Blanche em um movimento da tragédia para a comédia, Blanchett (a semelhança dos nomes assusta) acerta ao transformá-la numa catalisadora de todas as mazelas humanas, começando pela falta de amor próprio, sem com isso perder o discreto charme da extravagância. Ela nos ensina como deve ser tomar o melhor champanhe à beira de um precipício. Ou, nas suas próprias palavras: “Ansiedade, pesadelos e ataques nervosos. Há tantos traumas que uma pessoa pode segurar até que ela tome as ruas e comece a gritar.”