Que horas ela volta?, de Anna Muylaert

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Que horas ela volta?, pergunta o menino para a empregada da casa. O verbo tem o peso de muitas dúvidas, não apenas a explícita indefinição do tempo (a hora do regresso), mas a disfarçada incerteza sobre se ela, de fato, volta, e se, uma vez voltando, estará, de fato, presente. Na cena de abertura do filme, uma pergunta sobre voltar talvez seja a primeira pista de uma narrativa sobre partir. Partir pra outra história de se contar as histórias. Partir conceitos cristalizados, paredes invisíveis e indivisíveis, partir ao meio o tapete que cobre a sujeira. Partir da mulher a fala, e mais, partir da mulher preta e pobre essa voz. A diretora Anna Muylaert mira no avesso das palavras para dizer que precisamos partir/quebrar/rasgar/abandonar para, de fato, conseguir voltar e reencontrar o lugar e as pessoas que nunca deveriam ter sido deixados para trás.

Os anos se passam e o menino do começo do filme que faz a pergunta para Val (Regina Casé) se transforma em um adolescente. Assim como se torna uma adolescente a menina com quem Val falava ao telefone, sua filha que esperava também ver sua mãe voltar para casa. Logo se entende que o filme parte de um lugar (bastante) comum na vida privada do brasileiro: a empregada que deixa de cuidar dos seus filhos para criar os filhos dos patrões. Fácil seria fazer um filme sobre a Val vítima desse sistema, coitada, ou a Val sendo redimida por algum letrado homembranco/mulherbranca que iria lhe tirar os grilhões da escravidão psicológica. Mas Anna Muylaert, que poderia ela mesma vestir a manta da mulherbranca letrada generosamente estendendo sua mão salvadora, decide ouvir o que sua personagem tem a dizer. E ouvir em terra de surdos é fazer arte.

A pessoa que vemos na pele de Regina Casé é alguém muito familiar à classe média no Brasil. A empregada doméstica que mora no quarto dos fundos da Casa Grande, é grata pela TV que a patroa deu a ela e está ali há tantos anos que é “como se fosse” da casa, “como se fosse” uma de nós, “como se fosse” ser. É um acordo tácito para ambos os lados não tocar nessa fina bolha de ar que sustenta a afabilidade das relações de poder. O que esse filme faz é jogar ruído no não-dito, cutucar a bolha com a ponta do alfinete. Entra em cena o elemento abstrato destoante nessa tela de Jean Baptiste Debret. Jéssica (Camila Márdila), a filha de Val que cresceu no Nordeste enquanto sua mãe nordestina trabalhava em São Paulo, vai prestar vestibular na USP, mais precisamente na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, a FAU.

Em algum momento a adolescente chega a falar algo como “a arquitetura como uma ferramenta de mudança social” e sim, àquela altura, já se sabe que a distribuição dos espaços enquanto conquista política é um dos temas centrais do filme. Da cozinha pra lá, da piscina proibida, da cadeira em que não se deve sentar, do quartinho sem ventilação: a ocupação dos lugares é a viga que sustenta as relações nesse microcosmo, tudo filmado com uma câmera de movimentos contidos, consciente ela também dos espaços que lhe são permitidos. A luta de classes sendo, mais do que nunca, uma luta pelo apoderamento dos lugares.

Inegável encaixar essa história como prima de várias outras que têm registrado presença no cinema nacional nesses últimos anos, sendo expoentes dela as ficções Casa Grande e O Som ao Redor e documentário Domésticas. E embora o filme de Anna Muylaert pareça em um primeiro momento um pouco mais “careta” que esses outros longas do ponto de vista narrativo, há nele uma subversão poética em usar uma estrutura tão simples para fazer chegar seu discurso político a quem foge dele. A cineasta é hábil em construir o mais horizontal diálogo possível com o público e este, quem sabe, seduzido pelo selo Globo Filmes, vai entrar no cinema esperando ver uma Regina Casé modelo Esquenta (programa global que cristaliza a periferia enquanto adereço exótico) e terminar dando de cara com uma Regina Casé no melhor estilo terapia coletiva da sociedade classista brasileira. Em tempo: o nível de excelência de interpretação de Casé nesse papel inevitavelmente se desdobra na pergunta: por que não ocupar mais o tempo dessa atriz em sets de filmagens?

Sem apontar vilões e, mais importante, sem usar muletas como narração em off ou palestras na voz dos personagens, Que horas ela volta? puxa nosso braço a partir de um signo que costuma ser muito forte em movimentos sociais, a figura materna, e faz isso com uma mãe cuja luta se dá no campo do privado. O discurso existe, mas ele está nas graças, caretas, preocupações e silêncios de Val, no olhar impetuoso de Jéssica, no jogo de pista e recompensa de um conjunto de xícaras e, particularmente, na empatia que criamos com a personagem central, alguém por quem torcemos na mesma medida em que, estranhamente, nos identificamos. Porque nós, classe média espectadora de cinema, conhecemos Val, já passamos anos de nossas vidas ao lado dela, mas nunca nos colocamos em seu lugar.

O roteiro flui, e flui graças às escolhas certas da diretora. A primeira delas é partir desse protagonismo feminino, não somente de Val e sua filha, como também de Bárbara (Karine Teles), a patroa. Colocar essas mulheres no centro de um debate sobre relações de poder diz respeito a quebrar normas do lugar de fala do próprio poder. A pontuar que os dois personagens masculinos dessa história, o adolescente Fabinho (Michel Joelsas) e o pai Carlos (Lourenço Mutarelli) são os sujeitos passivos e confusos do roteiro. A segunda é jogar a questão das ocupações dos espaços (as permitidas e as proibidas) em um conflito geracional entre mãe e filha.

Além de ser um choque entre a perspectiva de alguém com uma vida pela frente e outra cuja vida já cansou seu corpo, e de ter se criado nessa relação uma distância irrecuperável, há um conflito sério de identidade e autoestima que é bastante particular de um país que viveu uma inserção social nesses últimos dez anos. Jéssica observa o mundo com os olhos de quem, da periferia, consegue enxergar o centro, enquanto o centro é completamente inábil em ver outra coisa além dele próprio. Val, imersa nesse ambiente autorreferente e autocentrado, se acostumou também a não olhar para além dele a ponto de entender, aceitar e criar afeto pelos elementos intimidadores da casa, a síndrome de Estocolmo de toda uma geração de empregadas domésticas “bem tratadas”. Já no primeiro encontro entre as duas personagens, fica clara a oposição entre esse olhar largo e panorâmico da filha diante do olhar estreito, adestrado com antolhos, da mãe. No aeroporto, Jéssica observa Val, que não sabe estar sendo observada. A personagem de Regina Casé está ali, prostrada diante da porta de desembarque, à espera da menina que já passou pela sua frente e ela não viu.

O espectador de cinema, que por disposição física está na periferia do olhar da câmera, se encontra agora observando como o centro (a produção de cinema) observa o seu redor. Estamos em um momento significativo de uma produção nacional cada vez mais política, criada quase sempre por uma classe média branca intelectual a tentar digerir suas heranças escravocratas. É um momento, portanto, de discurso, de uma linguagem onde esse discurso, sublimado ou exposto às claras, é nevrálgico aos filmes. Se olharmos um pouco mais para os lados do que está sendo discutido, é possível antecipar que se plantam hoje as sementes do que, em breve, pode vir a ser verdadeiramente disruptivo no cinema nacional. E isso vai acontecer quando personagens como Jéssica decidirem também contar a sua história. E então uma outra memória será construída, e novos espaços serão ocupados.

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