É possível ser em você mesmo nos tempos de guerra? Eis a questão que surge antes mesmo do argumento de Na Neblina, segundo filme de ficção de Sergei Loznitsa. Alguns elementos de Minha Felicidade, seu longa anterior, se repetem aqui: o frio, o inóspito, a rudeza, a retidão a despeito de um ambiente inclemente, os longos planos sequências e a câmera que persegue o homem sempre por trás, como se estivéssemos todos tentando alcançar, sem sucesso, a alma daqueles que caminham na nossa frente. Heróis sem rostos.
Mas Na Neblina alcança notas graves que Minha Felicidade apenas ensaia. Porque se aquele filme fala do homem, este fala de humanidade. Loznitsa, documentarista por formação, persegue agora essa estranha força interior dos mais crus princípios morais, a gênese do caráter. E faz isso com um personagem tão impressionante quanto o ator que o interpreta. Vladimir Svirskiy é Sushenya, um homem falsamente acusado de um crime, neste caso o de colaborar com o inimigo. No inverno da então União Soviética de 1942, em território da atual Ucrânia ocupado pela Alemanha nazista, Sushenya é “recrutado” para morrer em nome dessa suposta traição aos compatriotas russos.
O que se segue depois que ele recebe e, parcimoniosamente, se rende à sua sentença, é uma história de resistência. Das convicções internas que, sem alarde ou propaganda, não se curvam às concessões que fazemos em nome de uma instintiva sobrevivência.
A partir de flashbacks, vamos entendendo um pouco mais sobre como os três personagens – tanto Sushenya quanto seus dois algozes – chegaram onde chegaram. O olhar de Loznita parece ser tão firme e reto quanto a força física e moral de Shushenya. E a fotografia de Oleg Mutu, essa daí é uma outra personagem do filme. Mutu, que já havia fotografado Minha Felicidade e alguns dos mais importantes filmes do romenos desses últimos anos – 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, The Death of Mr. Lazarescu e o recente Além das Montanhas – tem o tom certo da desesperança coletiva. Ela é o ambiente contra o qual o protagonista resiste.
Em poucas palavras, Na Neblina é um filme que você carrega pra vida. E o monólogo final de Shushenya rimando com a fotografia enevoada de Mutu, é desses que te faz ficar estatelado na cadeira do cinema, deixando os créditos passarem, e esperando que, lá fora, a vida de alguma forma tenha desacelerado de suas angústias cotidianas.
:: Este filme estreou semana passada em SP – e segue em cartaz. Chega esta sexta ao Rio e Curitiba. Torcendo para que se espalhe por outras paragens ::